Personagem

DUARTE CORREIA

Para compor a personagem principal de Construir a terra, conquistar a vida, achei por bem começar aproveitando o que fosse possível da caracterização das personagens de Gerações e Franceses no MA, já que a nova história retomava temas e intenções das anteriores, como contei neste texto. Duarte, porém, nascia sob nova inspiração. Degredado, sim, mas não criminoso – pelo menos nada que pusesse maldade em seu coração. Teria, então, que ser pobre, e poderia ser condenado ao degredo por uma série de pequenos crimes mais inofensivos. Então o fiz um ladrão “de galinhas”, que vivia sendo preso e, por isso, tinha sido degredado de Portugal. Diante disso, o destino dele no Brasil seria certamente a cidade de Salvador. Para chegar ao Rio de Janeiro, local escolhido para a história, ele pegaria uma carona com a frota de Mem de Sá, e chegaria aqui em tempo de participar da expulsão definitiva dos franceses em 1567.
 
Enquanto elaborava as características físicas e psicológicas, ia pensando no nome. Gostei da idéia de usar um nome que era comum na época mas não se usa mais no Brasil – a ponto de ter virado sobrenome: Duarte. Pesquisando, descobri que o nome medieval Duarte evoluiu e hoje é Eduardo. Antes de se chamar Duarte, o nome era Fernando. Como Duarte soa mais antigo, e as chances de eu ter outra oportunidade para usar são remotas, preferi. Passei o Fernando para o sobrenome mas, como havia uma grande família Fernandes no Rio de Janeiro na época, troquei para Correia, sobrenome de um amigo português que tenho.
 
Precisava também definir o local de nascimento, com mais detalhes do que “Portugal, século XVI” (a primeira anotação que fiz). Escolhi a cidade de Lisboa, e que ele deveria ter perto de 30 anos em 1567, quando a história começa. Eu mesma tinha 26, então o fiz ter 27 anos, tendo nascido em 1540.
 
Foi difícil escolher a profissão e o motivo que o traria aqui. Ele podia ser soldado ou degredado, ou algum outro tipo de pobre que vinha acabar por aqui. Quando me decidi pela característica de degredado por ser ladrão de galinhas, pensei que ele poderia ter roubado um anel de bacharel e posar como tal. Mas, em algum momento, ele teria que provar suas habilidades de letrado, e a mentira viria a público. Achei melhor manter a nobreza de caráter e deixá-lo ser pobre assumido e honesto. Pela necessidade de conseguir para ele um emprego no Brasil, achei que ele poderia saber fazer contas. Decidi também, pelas datas dos eventos, que ele veio para o Brasil com Mem de Sá, em 1558 e depois para o Rio de Janeiro em 1567, para expulsar os franceses e se estabelecer aqui.
 
Pensei que ele poderia ter habilidade literária de criar versos, pois, como explicou a professora do curso que eu fazia na ECO/UFRJ na época, a literatura é a expressão artística mais difundida nas colônias porque não precisa de suporte para existir. Mas eu não sou boa em fazer versos, então ele nunca poderia divulgar suas composições, e isso empobreceria essa característica. Achei melhor tirar logo, e ele ficou mesmo sendo um pobre analfabeto sem maiores habilidades.
 
Logo percebi que a nobreza de caráter que eu esperava dele não condizia com uma pessoa que sempre viveu na pobreza, sustentando-se com furtos, pois isso o faria ter uma esperteza que eu mesma não tenho, por não ter tido uma vida assim. Então resolvi que o pai dele era rico, e ele teve uma infância confortável – quando a nobreza de caráter foi construída – mas ficou órfão e pobre na adolescência, e foi quando se tornou ladrão.
 
Listei também os temas que queria trabalhar, alguns provenientes das idéias antigas: solidão; nova vida na nova terra; luta e conquista da terra, que implica em tomar posse e defender; construção da pátria, numa espécie de nacionalismo incipiente.
 
Caberia a Duarte Correia, além de sustentar e conduzir toda a trama, ser o português deslumbrado com a natureza grandiosa do Brasil – e isso ficaria mais evidente por escolher uma índia para ser sua mulher. O encontro dos povos, quando selvagem e civilizado se encontram e se influenciam. Ao mesmo tempo em que ele a “civiliza”, ensinando-lhe seus valores, ele também se “barbariza”, na medida em que compreende – e até adota – valores da cultura dela. Assim foi se formando a cultura genuinamente brasileira, com costumes e valores próprios, inspirados mas diferentes dos costumes e valores dos povos formadores. No plano original, a índia morria ou o abandonava, para que ele se casasse com uma portuguesa e tivesse uma vida “normal”. Mas o amor deles foi tão verdadeiro que eu comecei a sofrer quando chegou a hora de separá-los. Então mudei os planos e deixei-os continuar juntos até o fim, enfrentando juntos todos os problemas que um casamento inter-racial gera, incluindo o destino dos filhos mestiços. Achei que era mais coerente com a personalidade dele ficar com ela a vida toda. E achei também que ela merecia viver esse amor até o fim da história. Não tem jeito: sou romântica e o amor tem que vencer. Nesse caso, o amor venceu até mesmo o projeto de desenvolvimento da história, e os desígnios da escritora-deusa, aquela que direciona os eventos, e a quem compete dar a vida e a morte.
 
Quando Duarte estava quase pronto, quis criar uma segunda personagem, que fosse, de alguma forma, um contraponto a Duarte. Tinha que ser brasileiro – de Salvador, provavelmente – para apresentar o ponto de vista do português deste lado do mar. Mas Fernão Lopes é assunto para outro texto.