Trecho

O canhoto – trecho

Capítulo I
 

– Nicolaas, volte aqui.
O menino entrou correndo no quarto e fechou a porta.
– Jan Nicolaas!
A mãe logo o encontrou, sentado na cama com ar emburrado.
– Isso é forma de se comportar? Volte imediatamente à sala.
– Não quero.
– Você precisa aprender a escrever -ela sentou-se ao lado dele.
– É muito difícil.
– No início, tudo é difícil.
– Tudo para mim é difícil sempre. Por que eu nasci assim?
– Porque Deus quis.
– Minha mão direita não presta para nada. Por que não posso usar a esquerda?
– Porque o certo é usar a mão direita para fazer as coisas. Agora venha, o professor está esperando.
Ele fechou os olhos, resignado, e as lágrimas rolaram.
– Peça a ele para não me bater se a letra ficar feia.
– Pedirei a ele para ser paciente agora no início. Mas quero que você prometa que vai praticar muitas horas por dia, até a letra ficar bonita.
– E se isso nunca acontecer, mãe? Minha mão é boba… -ele suspirou- Eu sou todo ao contrário…
– Eu sei que é difícil, meu filho. Mas você não pode desistir! Deus lhe deu essa cruz e você terá que carregá-la com todas as suas forças.
– Pelo menos isso eu posso fazer com a mão esquerda?
Ela sorriu, considerando que ele estava sendo espirituoso.
– Pode. Carregue a sua cruz com a mão esquerda. E faça todo o resto com a mão direita. Agora vamos voltar à sala, e trate de se comportar.
A mãe levantou-se primeiro e levou o filho pela mão de volta para o professor.

—“—

Frans van de Linde, rico negociante da cidade de Brugge, no condado de Flandres, atravessou a Praça do Mercado, em direção à Galeria das Águas, naquela terça-feira, 24 de junho de 1186. Lá dentro, muitas mercadorias passavam para lá e para cá, transportadas nos ombros dos carregadores, que esvaziavam os barcos e enchiam os armazéns. Frans procurou um pouco e logo encontrou seus filhos, dois rapazes jovens e bem dispostos. O mais velho, de lápis e papel na mão, conferia a encomenda e a entrega, enquanto o mais novo coordenava o trabalho dos carregadores, escolhendo as caixas a serem transportadas e decidindo onde depositá-las.
– Já podes aproveitar a vida -um amigo lhe disse- Teus filhos já dão conta do serviço.
– É verdade. São bons meninos. Tenho muito orgulho deles.
Ele deixou o amigo e foi até os rapazes.
– E então, Robrecht, tudo correto?
– Sim, pai. Falta descarregar ainda algumas caixas mas logo terminaremos.
Ele olhou para o outro filho, andando sem parar, subindo e descendo.
– Seu irmão não para?
Robrecht riu e respondeu:
– Não.
Então o pai chamou:
– Nicolaas.
Só então ele percebeu a presença do pai e foi até ele.
– Pronto, pai.
– Você carregou alguma caixa hoje?
– Não, nenhuma -respondeu com orgulho- Estou só coordenando.
– Muito bem. No próximo navio, faremos ao contrário: Nicolaas ficará conferindo a encomenda e Robrecht coordenará os carregadores.
– Ah, não, pai -ele pediu- Deixe Robrecht escrever. Escrever sentado à mesa já é difícil para mim; segurando o papel na mão será impossível.
– Nicolaas sabe o serviço, pai -Robrecht intercedeu- Muitas vezes ele é quem confere e eu só anoto.
– Está bem, então. Tenho ainda algumas visitas a fazer, para vender essa mercadoria. Não percam a hora do jantar.
– Terminaremos logo.
– Logo estarei em casa também -ele ia sair mas ainda disse- Nicolaas, calce os sapatos.
Frans saiu da Galeria das Águas, de volta à Praça do Mercado.
– Achei que ele não tinha visto…
Robrecht riu e repetiu as palavras que o pai já usara tantas vezes:
– “Calce os sapatos, Nicolaas: somos burgueses, não servos.”
– Calçado não posso andar de um lado a outro.
– Ele também não gosta de vê-lo andando tanto.
– Às vezes me irrita ter que fazer todas as coisas do jeito certo. Logo eu, que sou todo errado.
– Você não é todo errado. Você apenas tem dificuldade para fazer certas coisas. Vá lá, vamos terminar logo para irmos jantar.
Menos de meia-hora depois, os irmãos estavam saindo da Galeria das Águas, deixando toda a mercadoria guardada no depósito do pai. À tarde, iriam providenciar o transporte dos produtos para as diversas lojas da cidade. Eles pegaram a rua que beirava o canal, e caminharam por entre as pessoas que, como eles, apressavam-se por chegar em casa para a refeição. De repente, Nicolaas parou e respirou fundo.
– O que foi? -o irmão se preocupou.
– Está ficando cada vez mais frequente.
– Maus pensamentos de novo?
Ele concordou com a cabeça e completou:
– Acho que está acontecendo, Robrecht. Estou ficando com medo. Onde isso vai parar?
– Nicolaas, você não vai acreditar numa história de assustar criancinhas.
– Eu também achava que era só uma história. Mas está acontecendo comigo. Preciso fazer alguma coisa. Eu não quero ser controlado pelo demônio.
– Você não vai ser controlado-
– Você não sabe o que eu sinto. Você não sabe como é.
– Nicolaas, só porque você é canhoto-
– Não! Não diga essa palavra! Nunca! Você sabe que eu não gosto.
– Isso não o torna mais susceptível à influência do demônio. -ele completou o raciocínio.
– Você não sabe o que acontece dentro de mim, Robrecht. Estou lhe dizendo: eu também não acreditava. Mas agora estou com medo.
– O que pretende fazer?
– Ir embora.
– Para onde? -ele se assustou com a possibilidade.
– Ten Duinen.
– Um mosteiro? Ficou louco? Você não foi feito para a vida monacal.
– Lá o demônio não me alcançará.
– O demônio só o alcançará se você deixar.
– Aqui fora, sinto que estou perdendo a luta. Lá estarei mais perto de Deus.
– Não se precipite, Nicolaas.
– Não estou sendo precipitado. Faz quase um ano que penso em Ten Duinen.
– Esqueça isso tudo: o demônio, os mais pensamentos, Ten Duinen, tudo. Esqueça e viva normalmente. É só uma fase, vai passar.
– Faz dois anos que você diz que vai passar. Mas, em vez de passar, está piorando.
Robrecht não sabia o que dizer. Não queria ficar sem o irmão mas também não lhe agradava vê-lo assim, atormentado.
– Vamos para casa -Nicolaas concluiu- Não vamos decidir nada aqui e agora.
Eles andaram mais um pouco, até que Nicolaas parou novamente. Mais um barco vinha pelo canal, indo para o centro da cidade, e nele Nicolaas reconheceu uma pessoa, que sorria ao rever sua cidade.
– É Ester! -ele pensou alto, avisando Robrecht, e chamou por ela.
Ester atendeu, e sorriu ao ver quem a chamava.
– Que bom vê-los! -ela saiu de onde estava, na amurada da proa, e foi andando pela lateral do barco, para estar mais perto deles.
– Você voltou!
– Para sempre.
O barco continuava seu caminho, e Ester já chegara à popa, e já não se podia conversar. Então ela apenas gritou para eles:
– Irei vê-los à tarde.
Nicolaas confirmou com um gesto de cabeça, e ficou ali vendo o barco levá-la.
– Ester voltou… Para sempre, ela disse.
Robrecht concordou com um gesto de cabeça.
– Eu tinha me esquecido de como ela é linda. Como ela é linda!…
Robrecht puxou-o pelo braço, para que eles voltassem a andar.
– É assim que você quer ir para um mosteiro? Pensando numa mulher?
– Não estou “pensando” em Ester. Gosto dela: crescemos juntos.
– Sim, crescemos juntos, nós três. E eu não estou deslumbrado com a volta dela.
– A diferença de idade entre vocês é muito grande; você nunca teve muita afinidade com ela.
– Pode ser esse o motivo. Mas você ficou com cara de bobo quando a viu.
– Eu não esperava vê-la.
– Reconheceu de imediato uma pessoa que não via a dois anos.
– O tempo me faria esquecer o rosto dela?
– Ah, então confessa-
– Nem o seu!
– Mas nós dois somos sangue.
– Você só está tentando me confundir!
Eles entraram em casa, e foram logo à sala de refeições, onde a mãe acabava de arrumar a mesa.
– Encontramos Ester no caminho -Robrecht contou- Ela está de volta a Brugge.
– Ah, que alegria saber!
– Desculpe, Nicolaas, você queria dar a notícia?
– Ela disse que virá aqui à tarde -Nicolaas completou.
– Que bom. Vou mandar fazer o bolo de nozes de que ela gosta.
Frans também chegou à sala e Hannelore avisou ao marido:
– Ester virá aqui à tarde. Ela voltou a Brugge.
– Que bom! Quanto tempo ela ficou fora? dois anos? três?
– Dois -Robrecht respondeu, antes de Nicolaas.
– Vou mandar servir -Hannelore avisou- Sentem-se.
Os três sentaram-se, enquanto ela foi à cozinha chamar os empregados.
Depois da refeição, os três homens iam sair para terminar o trabalho do dia mas Nicolaas lembrou:
– Ester virá agora à tarde. Não podemos resolver os negócios depois?
– Os comerciantes estão aguardando a mercadoria hoje. Temos um compromisso a cumprir -Frans disse.
– Além disso, Ester provavelmente vai descansar um pouco e guardar a bagagem antes de vir -Robrecht completou.
– E por certo vai querer ficar mais com os pais dela do que conosco -Hannelore adivinhou.
– Resolvemos logo a entrega das mercadorias -Robrecht propôs- E voltamos em tempo de receber Ester.
– Sim, estão todos certos -Nicolaas concluiu- Vamos logo, então.
Os três sairam e Hannelore tomou as providências necessárias para receber os amigos logo mais. Pouco depois que os três homens voltaram, com os negócios resolvidos, a família de Ester bateu à porta. Os pais dela foram bem recebidos mas todos queriam ver e falar com a própria Ester. Hannelore abraçou-a primeiro, depois Frans segurou-lhe as mãos e beijou-lhe a testa. Eles comentaram:
– Está mais alta, mais bonita.
– Ganhou corpo -Frans observou- Seus dias de menina ficaram para trás.
Ester sorriu pelos elogios e foi até Robrecht. Segurou as mãos dele e beijou-o no rosto.
– Seja bem-vinda, Ester. Sentimos sua falta. É bom tê-la de volta.
– Eu também senti falta de vocês.
Eles trocaram um sorriso carinhoso e Ester estendeu as mãos para segurar as mãos de Nicolaas, mas ele não retribuiu o gesto. Ela estranhou a falta de cortesia e ele disse:
– Por que tão formal? Onde está minha Ester?
O sorriso dela aumentou e ela abraçou-o pelos ombros.
– Estou aqui -ela disse-lhe ao ouvido- Sempre estive, e sempre estarei.
– Que bom que você voltou -ele passou os braços ao redor dela.
– Quase morri de saudades, meu querido. Agora me solte, antes que meu pai brigue comigo.
Ele beijou-lhe o rosto e soltou o abraço. Eles ainda se olharam de mãos dadas e só então se soltaram. Todos sentaram-se e Hannelore pediu:
– Ester, conte tudo o que aconteceu nesses dois anos.
– Aconteceu tanta coisa… e nada, ao mesmo tempo. Eu não sei o que aconteceu no mundo, porque não recebíamos nenhuma notícia lá no convento.
– Conte o que você fez.
– Fui bem comportada. Aprendi muitas coisas. Li muitos livros. Éramos doze moças, e tínhamos contato com seis monjas, incluindo a abadessa. Mas a comunidade era maior, com umas vinte monjas. Aprendi tarefas domésticas, caligrafia, gramática, um pouco de história e filosofia. Li a Bíblia, vidas de santos, os pais da Igreja. Não havia muito o que fazer, então estudávamos e líamos quase todo o tempo.
– Não era monótono? -Robrecht perguntou.
– Completamente. Estávamos sempre inventando alguma coisa para animar o dia. Agora me contem vocês o que aconteceu no mundo nesses dois anos.
– A principal novidade é que a guerra contra a França acabou -Robrecht contou.
– Que ótimo! Já não era sem tempo. E ganhamos ou perdemos?
– Perdemos. Tivemos que entregar Vermandois ao Rei, e o Conde tem uma série de exigências a cumprir. É como se o pacto feudal não valesse mais. Philippe é um louco centralizador que não quer que os territórios tenham autonomia.
– Ah, política! -Hannelore interferiu- Vou pedir a Margaretha para servir um chá. Ela fez o bolo de nozes de que você gosta.
– Que maravilha! Estou mesmo morrendo de saudades dos bolos de Margaretha.
Hannelore foi à cozinha. Ester perguntou aos que ficaram:
– Faz tempo que a guerra acabou?
– Foi agora em março.
– E essa perda de autonomia afetou os negócios de alguma forma?
– Que eu tenha percebido, não -Frans respondeu- A guerra aumentou os impostos, mas agora tudo volta ao normal.
Hannelore voltou à sala e convidou-os a passarem para a sala de refeições. Enquanto todos se acomodavam, Margaretha trouxe o bolo e deixou sobre a mesa. Ester abraçou-a.
– Maga, querida, tive saudades de você.
– Como está bonita a minha menina! Fico feliz em ver meus três filhos crescidos, sadios e bonitos -ela olhou para os três jovens- Agora sente aí e coma bastante bolo: você está muito magrinha. Aquelas monjas não lhe davam comida?
– Davam. Mas nenhuma delas cozinha como você.
Ester sentou-se à mesa e Margaretha voltou à cozinha. As duas famílias lancharam e conversaram, e só depois da ceia a família de Ester despediu-se.
– Esteve muito quieto a tarde inteira -Ester comentou- Onde está meu Nicolaas?
– Seu Nicolaas tem preocupações quanto ao futuro.
Ela sorriu:
– Não precisa se preocupar mais: agora eu estou aqui.
Ele tentou retribuiu o sorriso dela mas não conseguiu mais do que um sorriso forçado. A família de Ester saiu e a família de Nicolaas recolheu-se para dormir.

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No outro dia, logo depois do desjejum, antes que a família se levantasse da mesa, Nicolaas disse:
– Preciso falar com vocês. Tive pesadelos esta noite de novo. E os maus pensamentos estão ficando cada vez mais frequentes. Não estou conseguindo controlar e logo será tarde demais. Quero ir para Ten Duinen.
Hannelore saiu de onde estava e foi abraçar o filho, chorando.
– Se fosse um lugar horrível, mãe, as pessoas não ficariam lá.
– Estou chorando por mim, que vou ficar sem meu filho.
– Você está desistindo muito cedo, Nicolaas -Robrecht tentou- Enterrar-se num mosteiro não resolve nada.
– Conheço um pouco da Regra -Frans disse- Há um período de noviciado que, se não me engano, é de um ano. Só o deixo ir com uma condição.
– Qual?
– Se durante esse período, você tiver qualquer dúvida, ou se sentir falta de nós e da vida que você tem aqui, você sairá de lá. E pensaremos em outra coisa para livrá-lo dos pesadelos e dos maus pensamentos. Quero que prometa que só ficará lá definitivamente se ficar completamente livre dos maus pensamentos e dos pesadelos, e se não sentir falta de nada do que ficou para trás.
– Eu prometo. A menor indecisão me fará sair de lá.
– Ele achará que a saudade passará com o tempo -Robrecht insistiu.
– Eu sei que não passa.
– Vai se livrar dos maus pensamentos e sufocar a saudade.
– Saudade não se sufoca -Frans disse- Se duvidar disso, vai sentir na pele. Saudade sufocada explode nas horas mais inconvenientes, causa constrangimento. O próprio abade recusará um monge que chora de saudade do mundo no meio da oração.
– E Ester? -Robrecht tentou outra coisa.
– Não comece de novo com isso.
– Você gosta dela.
– Já lhe disse como é que gosto dela.
– E ela gosta de você: ela o abraçou! E depois não parou de olhar para você.
– Ela estava com saudades!
Robrecht segurou a cabeça entre as mãos, inconformado, e estendeu-as na direção dos outros.
– Será que ninguém tem juízo? Será que ninguém vê que Nicolaas não será feliz num mosteiro?
– Ele vai voltar, Robrecht. -Frans respondeu, tranquilo- Todos sabemos que o lugar de Nicolaas é conosco – ele também. Mas é algo de que ele só se convencerá estando lá. Algumas crianças precisam por a mão na chama, para se convencerem de que o fogo queima. Se ele não for, nunca saberá como teria sido se tivesse ido. Você não pode ficar um ano sem seu irmão?
As palavras de Frans desarmaram Robrecht.
– Parece que terei que descobrir.
– Quando pretende ir? -Frans perguntou a Nicolaas.
– Logo.
– Antes, preciso que você passe todo o serviço para Robrecht. E talvez eu me lembre de alguma outra coisa que preciso que você faça antes de ir. Então, quando decidir uma data, não deixe para avisar na véséra -ele levantou-se da mesa- Agora vamos trabalhar. Hoje vou levá-los para visitar alguns clientes. Hannelore, deixe para chorar depois que ele partir.
Ele abraçou-a para tentar consolá-la:
– Não pode ficar sem seu filho por um ano?
– Não…
– E quando ele tiver que viajar para negociar com os fornecedores.
– Não…
Ele estreitou o abraço:
– Não temos escolha, minha querida. -e soltou-a- Procure ocupar-se, e não pensar no assunto.
Frans saiu com os filhos.
Antes do fim da manhã, Ester entrou na Galeria das Águas, um lugar eminentemente de homens, e foi até o depósito de Frans.
– Bom dia, senhores.
– Ester? -Nicolaas estranhou a presença dela ali- O que faz aqui?
– Seu pai me disse que vocês estavam aqui.
– Que tal foi dormir novamente na sua cama? -Robrecht perguntou.
– Muito bom. Na verdade, ainda estou me readaptando à minha vida -ela olhou para Nicolaas- Você está muito ocupado?
– Um pouco.
– Queria que você me mostrasse o que há de novo em Brugge.
– Brugge não mudou muito em dois anos.
– Então mostre-me os mesmos lugares de sempre.
Eles ficaram se olhando. Ele não sabia como recusar. Na verdade, ele não queria recusar. Mas um senso de dever lhe dizia que não podia trocar o trabalho pelo prazer. Robrecht percebeu e intercedeu:
– Pode ir, Nicolaas. Eu continuo sozinho. E depois leve Ester para jantar conosco.
– Meu pai…
– Eu falo com ele.
– Eu não quero atrapalhar -Ester percebeu que podia estar sendo inconveniente- Podemos fazer isso outra hora.
– Então não conhece Nicolaas, e sua preocupação em ser sempre o certinho? O que estamos fazendo não é urgente. Se não terminarmos hoje, terminamos amanhã. Vão logo.
Nicolaas e Ester despediram-se de Robrecht e saíram do depósito.
– Uma mulher com iniciativa -Robrecht pensou alto- Ousada, determinada… Que bom, Ester, vai precisar mesmo ser tudo isso.
Andando pela Galeria, Ester comentou:
– Eu nunca tinha vindo aqui.
– A Galeria das Águas não é lugar de mulher.
Ela riu:
– E qual é o lugar da mulher? Em casa?
– É.
– Se você pensasse assim, não teria reclamado da minha formalidade ontem.
– É diferente.
– Ah, então você quer privilégios.
– Não. Mas nós somos amigos. Os carregadores da Galeria são homens rudes.
– Então você pode olhar para mim e homens rudes não podem.
– Admira-me que você queira que homens rudes olhem para você.
– Mas por que estamos brigando? Eu vim à Galeria atrás de você.
Eles saíram para a Praça do Mercado.
– Aonde quer ir?
– Quero ver a cidade: as praças, as casas, os canais. Não há mesmo nada de novo?
– Alguma loja diferente, flores novas, alguma nova pintura numa casa. Mas nada de muito especial.
– Eu gosto daqui -ela parou de andar e olhou em volta- Essa movimentação, esse burburinho, essa agitação. É uma cidade viva.
– Como conseguiu ficar longe por dois anos?
– Quando a saudade batia, conava o tempo que restava para voltar. Foi o que me manteve.
– Não chegou a pensar em se tormar monja?
– Não. Eu pertenço ao mundo. Sabia que havia muita coisa me esperando aqui fora. Sabia que você estava aqui fora.
– E se eu não estivesse?
– É uma hipótese improvável, Nicolaas.
Por que estragar o passeio com a notícia de uma nova separação?
– Vê alguma coisa diferente aqui na Praça?
– Não. Há algo diferente que eu devia ver?
– Acho que não. Então vamos à Praça do Burgo. Depois vamos ver as praças menores, e os canais. E depois você vai jantar na minha casa.
– Eu não planejei jantar fora.
– Então vamos avisar seu pai.
Nicolaas ofereceu-lhe o braço, e eles foram à loja do pai de Ester. Depois continuaram o passeio até a hora do jantar. E, como o passeio não tinha terminado, ele se prolongou pela tarde, até quase a hora da ceia, quando Nicolaas deixou Ester em casa.
– Virá à minha festa, não virá?
– É claro.
– Vou reservar uma dança para cada convidado. Tem preferência por alguma?
Ele pensou um pouco, sorriu e respondeu:
– A maior.
Ela também sorriu, aprovando a resposta.
– Cuidarei disso. Amanhã e depois vou deixá-lo trabalhar. E nos veremos no sábado.
Ele concordou com um gesto de cabeça. Ela beijou-o no rosto e entrou em casa. Nicolaas trincou os dentes para conter o choro. Tudo seria tão mais fácil se pudesse controlar seus pensamentos. Talvez Robrecht tivesse razão e ele não devia nem ir para Ten Duinen. Talvez seu pai tivesse razão, e a saudade o faria voltar. Talvez ele mesmo tivesse razão e somente a proximidade de Deus afastaria o demônio. Numa coisa, por certo, seu pai tinha razão: precisava ir para descobrir.

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No sábado, a casa de Ester encheu-se com os amigos da família que vinham comemorar o retorno dela à cidade. Conforme planejado, ela destinou uma dança para cada convidado, e avisou aos músicos qual devia ser a maior e quais não precisavam ser tão longas. Robrecht viu que a mãe acompanhava a dança de Nicolaas e Ester e comentou:
– Não são um belo par?
– Quem me dera ela o convencesse a não ir…
– Ele não teve coragem de contar a ela.
– Mas ele está planejando ir depois de amanhã!
– Eu agora acredito em meu pai: ele vai voltar. Basta ele falar com Ester antes de ir.
– Ela precisa saber logo!
– Ela é uma mulher inteligente: saberá o melhor a fazer, na hora em que acontecer. Nicolaas a pegará de surpresa, e o desespero dela irá com ele para o mosteiro, e o trará de volta.
Mais algumas músicas e Ester procurou Robrecht:
– Reservei a próxima música para você.
– Você foi muito gentil ao dedicar uma música para cada homem da festa.
Ele a levava pela mão, por entre outros convidados.
– É que não quero ninguém com ciúmes.
Robrecht puxou Nicolaas e entregou a ele a mão de Ester, explicando:
– Então dance com ele.
Nenhum dos dois entendeu muito bem, mas aceitaram a sugestão, sorrindo um para o outro.
Quando todas as músicas tinham sido tocadas – já se anunciava a madrugada – os músicos foram aplaudidos e levantaram-se para sair. Estava terminada a festa. Ester foi até eles, e conversou com eles, e eles se sentaram novamente. O flautista explicou:
– Uma última música, a pedido da senhorita.
Ester passou por entre as pessoas até Robrecht:
– Especialmente para você. Não fuja, dance comigo.
– Eu? Por quê?
– Você me proporcionou um momento muito especial esta noite.
Robrecht sorriu, deu-lhe a mão e colocaram-se a postos para a dança. A música começou. Diferente das outras vezes, nenhum outro casal se apresentou para dançar. Então, quando a música acabou, as pessoas aplaudiram o casal de dançarinos. Aos poucos, os convidados foram despedindo-se, e logo na casa ficou apenas a família. Ester estava feliz por estar de volta, pela retomada do vínculo com os amigos, e pelo estreitamento desse vínculo com um amigo especial.

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A igreja de Sijnt Donatius estava cheia. As vozes da assembleia ecoavam pelas paredes e subiam para o Céu.
– Tão bonita esta missa… -Ester comentou com Robrecht e Nicolaas na praça, depois que a missa tinha terminado.
– As missas no convento eram diferentes?
– Só havia vozes de mulheres. É muito monótono. Ah -ela viu uma amiga a alguma distância- com licença.
Quando ela se afastou, Robrecht perguntou a Nicolaas:
– Quando dirá a ela de sua partida?
– Não quero contar.
– Isso eu sei. E você com certeza sabe que tem o dever de dizer a ela.
Ele suspirou:
– Ela vai chorar…
– Vai. Ela está fazendo planos, sabe? E os planos dela incluem você.
– Eu sei…
– Você precisa falar com ela. Quanto antes, melhor.
– Não tenho coragem…
– Então eu direi a ela. E será agora.
Robrecht ia andar mas Nicolaas segurou-o, apavorado pela possibilidade.
– Não!
– Então prometa que falará com ela.
– Não posso!
– Prometa contar a ela que você vai embora.
– Como?! Passamos dois anos contando as horas para o reencontro. E agora que ela voltou eu vou partir para sempre. Como vou dizer isso a ela?
– Assim, como acabou de me dizer.
– Não posso!
– Então não diga. E não vá.
– Que vai ser de mim se eu não for?
– Vai se casar com Ester, ter filhos, uma casa bonita. Trabalharemos juntos e envelheceremos juntos. Não vá, Nicolaas.
– E os maus pensamentos?
– Desaparecerão, agora que Ester voltou.
– Você sabe que eles começaram antes de ela ir. A presença dela não me protege. Se eu me casar com ela, e o demônio me controlar, que será dela?
– O demônio não o controlará.
– Eu não posso arriscar.
– Conte a ela. Ela tem o direito de tentar convencê-lo a não ir.
Nicolaas olhou para Ester, conversando alegremente com algumas amigas, não longe dali. Robrecht deu o ultimato:
– Nicolaas, você tem três alternativas: ou fala com ela agora; ou me dá sua palavra de que falará com ela antes de partir; ou eu mesmo falarei com ela agora -ele mostrou-lhe três dedos da mão- Escolha.
Nicolaas olhou para Robrecht e para Ester, e pensou o que seria melhor. Sabia que seria melhor que ele mesmo contasse a ela. Mas não tinha coragem de fazê-la sofrer.
– Falarei com ela depois. Pensarei nas melhores palavras e falarei com ela. Prometo.
– Vai para o Inferno se não cumprir essa promessa -ameaçou.
– Eu sei. Eu vou falar com ela. Só não consigo fazer isso agora.
– Meu pai me chama. Pense rápido e fale logo com ela.
Robrecht deixou o irmão para atender o pai, que conversava com o pai de Ester.
– Bom dia, Menheer Jansen.
– Bom dia, Robrecht. Estávamos conversando aqui sobre a forma como Ester o privilegiou ontem, ao pedir uma música extra para dançar com você.
– Foi apenas um agradecimento.
– Eu ficaria muito feliz em tê-lo como genro.
Robrecht perdeu a respiração de susto, mas logo conseguiu responder:
– Eu fico honrado, mas não posso aceitar. Ester ama Nicolaas.
– Ela quis dançar duas vezes com você.
– Ela dançou duas vezes com Nicolaas: eu cedi minha vez a ele. A música extra foi para me agradecer por isso.
– Vocês dois são amigos, se dão bem -ele ainda tentou.
– Menheer, há três pessoas envolvidas aqui: eu, Ester e Nicolaas. Ester ama Nicolaas, Nicolaas ama Ester, eu não amo Ester. Adoraremos ter Ester na família, mas como mulher de Nicolaas.
– Nicolaas ainda é muito novo… -ele pensou alto.
– Conversaremos novamente daqui a alguns anos -Frans sugeriu.
Aos poucos, as pessoas iam dispersando, voltando para casa, e a Praça do Burgo ia esvaziando.
Nicolaas passou o domingo preparando-se para a partida do dia seguinte. Se tudo acontecesse conforme planejava, nunca mais voltaria, nunca mais veria sua família, sua casa, sua cidade… nunca mais veria Ester. Mas, se conseguisse se libertar da angústia e do medo que os maus pensamentos lhe provocavam, valeria a pena. O preço era alto, mas preferia salvar sua vida e sua alma e, em consequência, a vida das pessoas que amava.
Logo cedo, no outro dia, Nicolaas arrumou algumas coisas num cavalo e despediu-se de seus pais e de Robrecht como se os visse pela última vez. Foi impossível conter as lágrimas mas Nicolaas montou o cavalo e partiu. Tinha sido difícil despedir-se do passado, como seria difícil agora despedir-se do futuro.
Nicolaas bateu à porta e foi recebido pela própria Ester.
– Acordou cedo! O que foi, caiu da cama?
– Vim despedir-me.
Ela se assustou e os dois sentaram-se.
– Não sabia que você ia viajar.
– Você sabe que eu sempre tive pesadelos.
– Todo mundo tem pesadelos às vezes.
– Mas os meus são muito frequentes. E os maus pensamentos também. Estou perdendo o controle, e tenho medo de estar sofrendo influência do demônio.
– Você sempre foi muito impressionado com isso. Sei que você sofreu muito por ser canhoto-
– Não diga essa palavra!
– mas agora já passou. Você já aprendeu a fazer as coisas com a mão direita.
– Tudo o que faço com a direita fica mal-feito. De pentear o cabelo a escrever. Tantos anos de treino, e eu não consegui me tornar destro.
– Não faz mal. Eu não me importo.
– Preciso ficar perto de Deus, para me livrar dessa influência má.
– Para onde você vai?
– Ten Duinen.
Ester engoliu em seco:
– Por quanto tempo?
– Para sempre.
– Não! -ela agarrou-o pelos pulsos e começou a chorar- Você não pode ir embora! E quanto a tudo o que planejamos, tudo o que queremos?
– Eu não posso me arriscar a ter minha vida controlada pelo demônio.
– Eu é que vou controlar sua vida.
– Tenho tido maus pensamentos três, às vezes quatro vezes ao dia. Daqui a pouco, terei maus pensamentos todo o tempo, e depois começarei a executar o mal. Eu preciso ir para perto de Deus enquanto há tempo. Daqui a pouco, será tarde demais.
– Não! Não! Não! -ela repetia sem parar.
– Entenda que eu não tenho escolha.
– E se tivesse?
– Para que quer essa ilusão? Eu vou embora, e é o melhor que posso fazer -ele beijou as mãos que o seguravam- Espero que seja feliz, Ester -ele levantou-se e ela o acompanhou- Eu preciso ir -pediu que o soltasse, e ela atendeu- Adeus, Ester.
– Não! -ela abraçou-o pelo tórax e apertou-o- Você não pode me deixar assim. Eu amo você, Nicolaas. Não aquele amor infantil de quando nos despedimos a dois anos atrás. Amo você como uma mulher ama um homem. Preciso de você como uma mulher precisa de um homem. Quero você… -o choro não a deixou continuar- Você não pode fazer isso comigo!
Ele abraçou-a e beijou-a na cabeça, e depois segurou-a pelos ombros, querendo soltar-se.
– É preciso, Ester.
– Não vá, não vá! Eu posso ajudá-lo, sei que posso.
– Você não faz idéia do tormento que tem sido minha vida. Eu preciso de paz, Ester.
– Você terá paz comigo.
Ele abraçou-a novamente e lembrou da promessa que fizera ao pai. Entendia agora o porquê dela. Entendia também porque Robrecht o forçara a falar com Ester antes de partir.
– Prometi a meu pai que voltarei se sentir falta da vida que tenho, e das pessoas que ficam.
Ela afrouxou o abraço e olhou para ele, parando de chorar.
– Prometeu voltar?
– Se sentir falta de alguma coisa. Tenho um ano de noviciado antes de ficar lá permanentemente.
– Então você vai voltar.
– Não sei. Se tudo der certo, eu não voltarei.
– Você vai voltar -ela deslizou as mãos até os ombros dele, e abraçou-o carinhosamente pelo pescoço- Vai pensar em mim e vai voltar -ela pôs seus lábios nos dele, e beijou-o delicadamente, mas com paixão. Nicolaas estreitou o abraço e correspondeu ao beijo dela, esquecendo-se do mundo, da viagem, de Ten Duinen, do demônio. Quando as bocas se soltaram, eles ficaram se olhando, ambos afogueados, e Ester falou primeiro, já completamente calma e dona de si:
– Eu posso esperar mais um ano, até você se curar dos pesadelos e aprender a controlar os maus pensamentos. Passei dois anos contando os dias, posso passar mais um ano contando dias.
– Eu posso não voltar depois de um ano.
– Eu lhe darei outro beijo melhor do que esse no dia em que você voltar.
– Melhor?
– Esse foi um beijo triste, de despedida. O beijo feliz do reencontro certamente será melhor.
Não, não queria mais ir – Nicolaas pensou – Para que esperar meses por um segundo beijo, se podia vê-la no dia seguinte, se podia vê-la todos os dias…; se podia tê-la em sua casa…, em sua cama…, em sua vida…? Mas tinha o direito de transformar a vida de Ester no tormento que era sua vida?
– Quero dedicar-me inteiro a você, Ester. Mas isso é algo que não conseguirei fazer agora. Tenho que ir para Ten Duinen, mesmo que seja apenas para ter certeza de que lá não é meu lugar.
– Eu já tenho essa certeza. Você não vai ficar lá nem um ano. Ouso arriscar seis… não, oito meses. Você voltará para mim em menos de oito meses. Por que não conta os dias, para saber se acertarei ou não?
– Lembrarei disso quando se completarem oito meses.
Tinha que dar um jeito de fazê-lo pensar nela todos os dias – Ester pensou – Mas o que poderia funcionar?
– Pelo menos reze por mim.
– Rezarei.
– Todos os dias. Precisarei de orações todos os dias, porque sofrerei todos os dias até você voltar.
– Rezarei todos os dias.
Ele soltou-a.
– Aguardarei seu retorno… e sonharei com o segundo beijo.
Nicolaas beijou as mãos dela e saiu, antes que desistisse completamente de ir, montou o cavalo e partiu. Ester saiu também e o viu afastar-se, talvez para sempre. Ela entrou novamente em casa antes de gritar e agarrar os cabelos como se fosse arrancá-los. Os pais de Ester e também Robrecht entraram na sala correndo para socorrê-la, e a mãe abraçou-a, para tentar acalmá-la.
– O que Robrecht faz aqui? -ela envergonhou-se que ele presenciasse seu desespero.
– Vim pedir a seus pais que não interferissem na sua conversa com Nicolaas. Pode ficar calma, Ester: ele vai voltar. Ele quase desistiu de ir, ele não vai aguentar nem dois meses longe de você. Não com a promessa de um segundo beijo.
Ester corou:
– Vocês ouviram a conversa!?
– Foi a condição de seu pai para não interferir.
– E me arrependi! Tive que ver minha filha lambendo um homem e não pude fazer nada.
– E ficaram espiando! -ela cobriu o rosto com as mãos- Ah, meu Deus, que vergonha!
– Foi isso o que você aprendeu com aquelas monjas? -ele estava furioso.
– Não -ela tirou as mãos do rosto- Isso aprendi com minha mãe.
– E põe a culpa em mim!
– A senhora me ensinou a lutar pelo que eu quero, e a usar todas as armas disponíveis. A senhora sempre disse que uma mulher consegue tudo de um homem, se usar seus talentos femininos.
– Mesmo assim, Ester, você se excedeu.
– Desculpem, Mevrow, Menheer, mas eu concordo com Ester. Nicolaas quase desistiu de ir. Ela o amarrou com todos os laços: ele não conseguirá escapar dos encantos dela. Vai lembrar do contato físico, das palavras… e vai voltar. Parabéns, Ester, você terá Nicolaas de volta.