Trecho retirado do livro 1:
I
A mãe bateu à porta do quarto e chamou:
— Rodrigo, já está na hora.
— Já vou.
O despertador já tinha tocado também. Ele não tinha mais desculpa para continuar na cama, então levantou-se e foi ao banheiro. Arrumou a cama, vestiu o uniforme da escola e penteou os cabelos. Depois foi para a sala e sentou-se à mesa, onde já estavam seu pai, Rui, e suas duas irmãs, Luciana e Mariana, gêmeas de dez anos. A mãe, Lenita, trouxe da cozinha a leiteira com leite quente e também sentou-se. A família fez a refeição reunida e depois mãe e filho saíram.
— Eu não demoro -Lenita disse ao despedir-se de Rui— Só vou e volto. Ele já está bem grandinho, já pode enfrentar o primeiro dia de aulas sozinho.
— Escola nova, cidade grande… -ele lembrou, preocupado.
— Motivos a mais para eu não passar do portão. Vai dar tudo certo; não se preocupe.
A escola ficava a duas quadras de casa, e em menos de dez minutos, passando por uma rua quase sem movimento de carros, eles se despediram junto ao portão da escola.
— Porte-se bem -ela recomendou.
— Por que diz isso? Alguma vez me portei mal?
— Não -ela reconheceu, sorrindo.
— Por que não diz “divirta-se”?
Ela riu e recomendou:
— Divirta-se. Aprenda coisas legais e faça muitos amigos.
Ele sorriu, achando melhor essa recomendação, e entrou na escola.
Primeiro dia de aula numa escola nova. Não conhecia nada nem ninguém, e não queria perguntar aonde dirigir-se para que não pensassem que ele era um caipira perdido na cidade grande. Então acompanhou os outros alunos que chegavam, em direção ao pátio coberto, onde as turmas se reuniam para subirem ordenadamente em fila a suas salas de aula.
Rodrigo observou os outros e concluiu que as turmas se organizavam cronoloficamente. Contou o terceiro grupo a partir dos maiores e se aproximou do aglomerado que não chegava a ser uma fila.
— Primeiro ano?
— É aqui -o menino respondeu e chamou— Galera, mais um aluno novo.
Os novos colegas cercaram Rodrigo fazendo perguntas:
— Como é o seu nome?
— Quantos anos você tem?
— Onde você estudava antes?
— Onde você mora?
— Que tipo de música você gosta?
Rodrigo abriu a boca para responder mas soou o sinal e o que era um aglomerado organizou-se numa fila que, chegada sua vez, subiu para a sala, nova para todos. Rodrigo tinha ficado no final da fila e, quando entrou na sala, encontrou quase todos os lugares já ocupados pelos veteranos.
— Odeio sentar atrás -ele resmungou e foi andando entre as carteiras, procurando onde poderia acomodar-se. Quando achou um lugar, sentou-se— Qual o critério de distribuição dos lugares? -ele perguntou ao colega da frente.
— Critério? -ele estranhou a pergunta— Cada um senta onde quer.
— Pois devia ser por ordem de tamanho. Eu não vou enxergar nada sentado atrás de você.
O veterano levantou o braço e falou para a turma:
— Aí, galera, o novato aqui é um nerd que quer enxergar a aula. Será que alguám da primeira fila pode dar o lugar pra ele?
— Pode ser na segunda? -um garoto agitado ofereceu e recolheu suas coisas para desocupar o lugar.
Rodrigo estranhou tanta solicitude tão rápida mas fez um sinal de “jóia” para seu ex-vizinho e para o garoto que vinha ocupar seu lugar, e agradeceu:
— Valeu!
E foi sentar-se na segunda fila, atrás de uma menina de óculos redondos e jeito tímido, que lhe disse:
— Bem-vindo ao mundo dos nerds.
— Já estou nesse mundo faz tempo.
— Os professores botaram o Gustavo nesse lugar ano passado para ele parar de fazer bagunça. Você o devolveu ao lugar dele. Eles acham que basta sentar na frente para virar nerd.
— Meu nome é Rodrigo, e o seu?
— Juliana. Mas todo mundo me chama de Juju.
Eles trocaram um sorriso e Juliana virou-se de frente para a professora, que acabara de entrar na sala.
— Bom dia, turma.
— Bom dia, Dona Raquel -eles responderam em coro.
A professora deixou suas coisas sobre a mesa e olhou com atenção para os alunos, reconhecendo os rostos antigos e identiricando os novos.
— O que você está fazendo aí atrás, Gustavo?
A turma riu e o garoto se explicou:
— O novato nerd gosta de sentar na frente, “Fessora”. Eu fui educado e dei o lugar pra ele.
O argumento era tão perfeito que a professora não teve como contestar.
— Muito bem, “novato nerd que gosta de sentar na frente”, o que mais a turma sabe sobre você?
— Nada.
— Então venha aqui, aonde todos podem vê-lo, e apresente-se.
Rodrigo respirou fundo. Não era o tipo tímido mas a adolescência trouxera uma certa aversão à auto-exposição. Ele tomou coragem e foi até onde estava a professora.
— Meu nome é Rodrigo Menezes, tenho quinze anos e é meu primeiro dia neste colégio. Eu gosto de tirar boas notas mas não sou nerd: eu tenho vida.
— De que escola você vem? -uma colega perguntou.
— Eu venho de outra cidade. Nasci e cresci em Barra Mansa. Viemos morar no Rio este ano.
— O que gosta de fazer nas horas livres? -outra curiosa perguntou.
— Passear, bater papo com os amigos, almoçar na casa da minha avó paterna… nadar, jogar futebol, dançar… -e resumiu— curtir a vida.
— Obrigada, Rodrigo -a professora decidiu que bastava e chamou outro aluno— Você também é novo: venha aqui também se apresentar.
Rodrigo voltou a seu lugar e Leandro, o outro garoto, foi à frente. Ele era meio tímido e gaguejou um pouco enquanto falava, provocando risos da turma. Depois foi a vez de Beatriz, uma menina morena de cabelos pretos e olhos verdes, consciente de sua beleza e do poder da juventude. Por fim, a professora falou do curso que ia dar nesse ano: História do Brasil. Ela tentou apresentar-se rígida — pois agora tratava-se de Ensino Médio— mas todos sabiam que ela tinha coração mole e não reprovaria ninguém sem bom motivo.
As aulas prosseguiram e, na hora do intervalo, Rodrigo comeu o lanche que trouxera de casa — um sanduíche de queijo com presunto e uma caixinha de suco de goiaba — e olhou em volta procurando como enturmar-se. Os dois garotos da troca de lugar vieram falar com ele:
— Aí, foi mal: te chamei de nerd. -o ex-vizinho se desculpou.
— Na boa -Rodrigo respondeu.
— Você é bom de futebol? -Gustavo perguntou.
— Nunca quebrei ninguém.
— Quer jogar?
— Vamos. Juliana me falou que seu nome é Gustavo. Mas e o seu?
— Rico. Me chame de Rico.
— Rico, de Ricardo? -Rodrigo arriscou.
— Rico de Eurico -Gustavo explicou— Mas ele não gosta do nome, então só chame ele pelo nome quando quiser apanhar.
— Cala a boca! -Rico deu um tapa na nuca de Gustavo, comprovando a história de não gostar do próprio nome.
Gustavo ia revidar mas Rodrigo segurou:
— É pra jogar bola ou é luta livre?
Os outros dois esqueceram o assunto e os três tomaram o rumo da quadra descoberta. Pelo caminho, foram chamando os colegas habituais de jogo e também os novos. Um deles trouxe a bola do armário de materiais de educação física; eles se dividiram em dois times com o mesmo número de jogadores; e fizeram a bola rolar.
Foi um jogo de apenas quinze minutos, tempo bastante para dois ou três gols e para socialização e entrosamento dos alunos novos com os antigos. Ao meio dia, quando o período de aulas acabou, Rodrigo desceu se despedindo dos novos colegas como se os conhecessa há meses. Só quando chegou perto do prtão ele se lembrou de que não tinha mais autorização para sair sozinho, e de que a mãe só viria à uma hora, quando trouxesse as duas menores para as aulas no turno da tarde. Ele suspirou, resignado, e sentou-se num banco do pátio perto do corredor de acesso à escola. Como ocupar-se por uma hora? Ele abriu a mochila, pegou os cadernos e começou a fazer as tarefas de casa. Que ótimo, ficaria com a tarde livre.
— O que ainda está fazendo aqui? -a coordenadora o viu e foi até ele.
— Esperando a minha mãe -ele mostrou sua carteira com uma tarja vermelha, que indicava que ele não podia sair da escola sozinho.
— Venha, vamos ligar para ela e ver o que aconteceu.
— Ela está dando almoço às minhas irmãs, que vêm no turno da tarde. ela traz as duas e me pega. Foi o que combinamos.
— Eu não posso deixar você aqui sozinho.
— Eu não vou aprontar nada. Só estou adiantando o dever de casa. E a moça ali da cantina está me vendo.
— Está bem. Eu vou almoçar, que logo as crianças do turno da tarde começam a chegar.
— É o que eu espero…
A coordenadora afastou-se e Rodrigo voltou a atenção ao dever de casa. Tomara Lenita chegar logo, pois estava morrendo de fome. Quando viu a mãe e as irmãs entrando pelo portão, guardou as coisas na mochila e foi até elas. Ele guiou-as ao págio e esperou que a mãe entregasse as filhas à professora do quinto ano. Depois, mãe e filho voltaram para casa.
— Como foi o primeiro dia?
— Bom. Consegui um lugar na frente; joguei bola no recreio.
— Divertiu-se, então.
— É, pode ser.
Rodrigo trocou de roupa, lavou as mãos e o rosto, arrumou seu prato, esquentou-o no forno de micro-ondas e sentou-se à mesa sozinho. Quando ele já estava acabando de comer, a mãe veio à sala.
— Está bom o almoço?
— Não gosto de comer sozinho. Vai ser assim o ano todo?
— Hoje foi só o primeiro dia. Vamos ajustando as coisas aos poucos.
Rodrigo aproveitou a tarde para terminar o dever de casa, ouvir música e jogar no computador da família, que ficava no quarto dos pais.. À noite, os cinco encontraram-se à mesa para jantar, quando trocaram impressões do primeiro dia na escola nova.
A programação se repetiu a semana toda mas, quando voltava para casa com a mãe, na sexta-feira, depois das aulas, Rodrigo disse:
— Você acha esta rua perigosa?
— Não parece. Por quê? Você ouviu alguma coisa?
— Você não acha que eu sou capaz de andar por esta rua sem me perder, sem sofrer um acidente e sem aprontar?
— Hein?
— É tão perto! Eu posso ir e vir sozinho. A Morais e Silva é fácil de atravessar e esta rua quase não tem movimento. Eu já tenho quinze anos, eu sei me cuidar.
— Rodrigo, isto aqui não é Barra Mansa.
— Mãe, a escola é quase na esquina de casa! Você acha o que? Que eu vou me perder? Que vou ser sequestrado? Que vou cair nessa rua idiota e quebrar a perna? Não tem sentido eu ficar uma hora na escola esperando para andar com você essa distândia tão curta, como se eu fosse um bebezinho que não sabe para onde vai.
Lenita pensou um pouco e respondeu:
— Eu vou falar com seu pai.
A família aproveitou o final de semana de sol e calor para ir à praia de manhã e ao cinema à tarde, no sábado e no domingo. Na segunda-feira, Lenita apresentou-se para levar Rodrigo à escola.
— Pensei que vocês me considerassem capaz de ir à escola sozinho.
— Sim, mas eu preciso avisar isso à escola.
Rodrigo quase sorriu: estava a um passo de ser independente na cidade grande. Seus primos Thiago e Roberto morreriam de inveja quando soubessem.
Então, quando se despediram, no portão da escola, Lenita recomendou:
— Você sai daqui ao meio-dia. Meio-dia e quinze quero você tocando a campainha de casa. Não fique conversando com os colegas e não faça outro caminho.
— Está bem! -a recomendação lhe parecia uma ameaça.
— Vou pedir na secretaria que façam uma carteira nova para você, e que alguém leve à sua sala.
Eles trocaram um beijo no rosto. Rodrigo foi para o pátio encontrar sua turma e Lenira foi à secretaria da escola Ao meio-dia, quando ele desceu com sua carteira nova, com uma tarja verde, ele quase sorria de alegria. Foi uma experiência fantástica andar sozinho até em casa. Era uma distância curta, passando por ruas pouco movimentadas, mas era muito bom ser responsável por si mesmo.
Todo dia era dia de jogar futebol no recreio. Rodrigo entrosara facilmente com todos os meninos de sua turma e eles sempre ocupavam a quadra para jogar. A quadra era um pouco afastada do pátio coberto, onde geralmente as meninas ficavam, conversando, e onde os menores corriam e brincavam. Mas uma bola chutada com muita força saiu da quadra e atravessou o pátio, indo parar perto dos banheiros. Rodrigo estava mais perto, e correu atrás da bola para pegá-la. Naquele corredor largo que dava acesso aos banheiros, havia um banco de alvenaria e, sobre ele, uma menina, sentada sobre os tornozelos e debruçada sobre os joelhos, ocupava-se em colorir uma revista com canetinhas coloridas. Rodrigo estranhou vê-la ali, assim, e achou que precisava justificar sua presença.
— Desculpe atrapalhar, mas a bola caiu aqui.
A menina apenas balançou levemente, para frente e para trás, e Rodrigo ouviu os colegas chamando-o, e voltou correndo para a quadra.
— Quem é aquela menina?
— É a Angela -Henrique contou— Deixa ela quieta, tá?
— Mas por que ela fica ali assim, afastada de todo mundo?
— É o jeito dela. Não se mete com ela, não, Rodrigo.
Rodrigo estranhou a recomendação mas não falou mais nada, e eles retomaram o jogo.
No outro dia, assim que chegou à quadra, Rodrigo olhou para o corredor dos banheiros e viu Angela. Era como se ela estivesse ali desde o dia anterior, na mesma posição, na mesma atividade. Que menina esquisita…
—”—
A família de Rodrigo viajou para Barra Mansa no Carnaval. Estavam todos saudosos e esse reencontro vinha em boa hora. Na quarta-feira de Cinzas, Rui voltou sozinho para o Rio, pois iria trabalhar quinta e sexta. As crianças também teriam aula mas início de ano era a hora para enforcar feriado: não é época de prova e ainda é pouca matéria dada, e fica mais fácil para recuperar e acompanhar a turma depois.
Rodrigo nem lembrava mais de Angela, até que pisou na quadra, na segunda-feira depois do Carnaval. Era irresistível olhar para aquele banco e ela estava sempre ali, na mesma posição, até perto da hora do sinal tocar o fim do recreio. Então ela repetia os mesmos gestos, guardando suas coisas, e saía dali. Era o único momento em que ele podia vê-la. Nunca a vira na entrada nem na saída. Que estranho…
Lembrava da recomendação do Henrique “não se meta com ela”, “deixa ela quieta”, mas a curiosidade estava espetando-o e tinha que fazer alguma coisa. Então, na quinta-feira, em vez de lanchar e ir jogar bola, Rodrigo foi ao canto em que Angela ficava. Como sempre, ela estava debruçada sobre os joelhos, pintando áreas específicas de uma revista de moda.
— Oi -ele sentou-se em frente a ela, a certa distância da revista que ela pintava— Meu nome é Rodrigo; eu sou novo na escola
Ela não disse nada, então ele foi direto:
— Que que cê tá fazendo?
— Desenho -ela respondeu simplesmente, sem parar o que fazia.
— Isso não é desenhar: você está colorindo coisas que já existem -e partiu para a segunda dúvida— Por que você fica aqui neste canto? Parece que está se escondendo.
— Muito barulho.
— Você já lanchou?
— Já.
— Te incomoda se eu lanchar?
— Não.
Rodrigo abriu o embrulho, que continha bolo comum e uma caixinha de achocolatado.
— Quer um pedaço?
— Não.
Ele comeu rápido porque, na verdade, queria conversar.
— Me disseram que seu nome é Angela.
Ela não respondeu.
— Você estuda aqui há muito tempo?
— A vida toda.
— Puxa, que legal! Em que série você está?
— A última.
— Terceiro ano?
Ela tirou a caneta de cima da revista, organizando o pensamento, para responder:
— Fundamental.
— Ah, nono ano, então.
— É.
— Eu tô no primeiro, do Ensino Médio.
Ela não continuou a conversa e ele ficou observando a atividade e a atitude dela.
— Você não tá a fim de conversar, né? -e concluiu— Eu tô te incomodando.
— Não -ela ergueu um pouco o tronco e olhou para ele rapidamente e de novo para a revista. Apertou a canetinha na mão, sem saber o que devia fazer. Ele pensou ter adivinhado o que ela queria:
— Você tá me mandando embora… mas eu não consigo sair daqui.
— Não -ela suspirou, organizando o pensamento em frases, e confessou— Angela não sabe o que falar. Angela não conhece Rodrigo.
Ele sorriu da sinceridade dela.
— Eu também não conheço você. É por isso que estamos conversando.
— Angela gosta de computador e de jogos de tabuleiro; de ir à praia e de passear na floresta.
Ela tinha um jeito de falar tão simples, tão ingênuo… como uma criança que não enxerga maldade e abre seu coração a quem encontrar. Ao mesmo tempo, a fala dela era monotônica, plana, sem entonação.
— Eu também. -ele respondeu, encantado— E também gosto de andar de bicicleta, de jogar bola e de dançar.
Ela sorriu e contou:
— Angela não sabe jogar bola.
— Eu tava jogando futebol com os meninos aquele dia que a bola caiu aqui. Você se assustou, não foi?
— É.
Ela olhou em volta dele, sem fixar os olhos nele. Era como se ele não existisse, ou fosse insignificante. E, mesmo assim, Rodrigo sentia o olhar dela atravessando-o, investigando-o. O recreio logo acabaria e, com ele, esse momento mágico.
— Podemos conversar de novo amanhã?
— É, amanhã.
Ela olhou o relógio e viu que era hora de guardar suas coisas. E repetiu os mesmos gestos de todos os dias. Rodrigo contemplava os gestos dela, emocionado com tanta singeleza.
— Você… -ele conseguiu expressar— é a pessoa mais doce que eu já conheci.
E, como ela olhasse para baixo, ele segurou o queixo dela, pedindo um olhar. Ela se afastou, assustada, e se levantou bruscamente, e começou a sacudir as mãos na altura da cabeça. Rodrigo se assustou com a reação dela e se levantou também, sem saber o que fazer. Mas uma outra menina sabia bem o que fazer e foi até Rodrigo, com raiva:
— Seu idiota” -ela deu-lhe um tapa no rosto, com toda força que tinha— Você não pode tocar nela! Ela é autista!
A menina foi até Angela e tentou entrar no campo visual dela e ser ouvida: nas horas de crise, às vezes Angela “saía do ar”.
— Angela, está tudo bem, tá? É Simone. Eu vou abraçar você e vai ficar tudo bem, tá?
Simone percebeu quando Angela desarmou-se, permitindo aproximação e abraçou-a. Era um abraço consolador e protetor e, aos poucos, o flapping de Angela acalmou até parar. Então tocou o sinal, avisando o final do recreio, e Angela fechou os olhos, cobriu os ouvidos e gritou junto com ele, entrando em novo surto. Rodrigo só assistia, ainda sem entender o que estava presenciando.
— Vai pra sala, Rodrigo -Simone mandou— Você só está atrapalhando.
A ordem direta fez Rodrigo voltar a se mexer e falar:
— Eu não sabia. Me desculpe.
— Sai daqui.
— Me desculpe, Angela -ele insistiu, enquanto passava por elas— Eu não sabia.
Os alunos já estavam a caminho de suas salas e, por isso, Rodrigo encontrou as escadas meio vazias e pôde subir rápido. Mas, quando entrou na sala, foi alvo de olhares reprovadores. Ele fixou o olhar para o chão e foi sentar-se em seu lugar. Sentia-se um criminoso e a sensação aumentou quando Henrique veio falar com ele.
— Mexeu com a Angela, mexeu com todo mundo.
— Eu não sabia -defendeu-se— Você podia ter me dito aquele dia que ela é autista.
— Te falei pra ficar longe dela.
— A gente só tava conversando. Nada de mais. Aí ela surtou.
— Você tocou nela.
— Juju, você surtaria se eu tocasse você? -ele buscou uma aliada.
— Você foi muito abusado -ela respondeu, rispidamente— Ela surtou porque não sabe virar a mão na sua cara, igual a Simone fez.
— Que merda! Tava todo mundo olhando?
— Tava -Henrique respondeu— Nesta escola, todo mundo conhece a Angela e a gente cuida dela.
— Eu não fiz nada de mais -ele tentou conter o choro— Eu não sabia que ela é autista. Se ela não fosse autista, ela tinha virado a mão na minha cara e tava tudo bem. Como eu podia adivinhar que ela é diferenre?
Rodrigo passou as mãos pelas bochechas, ainda mais envergonhado por estar chorando em público. A professora de matemática entro na sala e logo sentiu o clima tenso.
— O que está acontecendo aqui?
— Ele encostou na Angela e ela surtou -Henrique resumiu e foi sentar-se em seu lugar.
Simone chegou e entrou na sala:
— Dá licença, Dona Mirtes.
— Como ela está? -a própria professora perguntou a Simone, pois sabia o que significava “a Angela surtou”.
— Tá na sala dela, se regulando.
— Depois de um meltdown daqueles, ela vai ficar nisso o dia todo -um dos meninos adivinhou— É melhor ligar logo pra mãe dela vir buscar.
— Isso é decisão da escola, Cleber, e não nossa -Simone disse. E, antes de ir para seu lugar, advertiu Rodrigo— Tô de olho em você, garoto.
Juliana se virou para trás e acrescentou:
— Estamos todos de olho em você. Angela é nossa amiga e você não vai fazer mal a ela.
O choro novamente quis se manifestar e novamente Rodrigo tentou contê-lo, com pouco sucesso. Parecia tão inocente a ideia de falar com aquela menina esquisita… parecia tão natural pedir-lhe pelo menos um olhar… E uma coisa chamada “autismo” estragara tudo…
— Gente, não precisa crucificar o garoto por isso -Dona Mirtes interferiu— Tenho certeza de que foi um acidente.
Rodrigo anuiu com a cabeça e a professora lhe disse:
— Vá lavar o rosto.
Rodrigo atendeu rápido, para sair logo daquela sala opressora. No banheiro, Rodrigo liberou todo o choro primeiro, para só depois acalmar e lavar o rosto. De volta à sala, o ambiente de conflito tinha se dissipado e a turma prestava atenção às explicações da professora. Ele pegou seu material, copiou no caderno o que havia no quadro e tentou adivinhar a parte da explicação que perdera, para acompanhar o restante. A vida estava de volta a seu curso normal.
Mais tarde, na hora da saída, Rodrigo perguntou à moça que ficava no portão, conferindo que só estava saindo quem tinha autorização para isso.
— A Angela, aquela menina autista, já saiu?
— Já. Aconteceu alguma coisa no recreio que deixou ela nervosa e a mãe veio buscá-la mais cedo.
A “alguma coisa” sou eu -ele pensou. Mas disse:
— Ah… A mãe vem buscar ela todo dia?
— Não. É porque hoje ela estava nervosa.
— Ah… E… ela sai por aqui mesmo, junto com todo mundo?
— Sai: não tem outra porta! Mas ela espera todo mundo sair primeiro, e só então ela sai.
— Todo mundo?! -isso ia estourar seu prazo de quinze minutos para chegar em casa.
— É, ela espera uns cinco minutos, até a maioria dos alunos sair.
— Ah… é que ela não gosta de barulho, né?
— É. Você conhece ela?
— Conheci outro dia.
— Ela é um amorzinho -contou sorrindo— Está conosco desde pequenina.
— É, tô sabendo. Bem, tenho que ir: se me atrasar, minha mãe me mata. Ou morre do coração, o que é pior!
Ele se despediu da moça com um sorriso e saiu. Meio dia e cinco. Angela estaria saindo da sala agora, não fosse o incidente do recreio. Não havia mais nenhum de seus colegas ali. Para falar de novo com ela — e pedir desculpas pelo que tinha feito — teria que ser ali, fora do portão da escola, na rua, onde estariam virtualmente sozinhos. Mal podia esperar pelo dia seguinte.
Rodrigo chegou em casa e trocou de roupa em tempo de fazer parte da refeição com a mãe e as irmãs. Antes de uma hora, as três saíram para a escola. Rodrigo estava terminando o almoço quando a mãe voltou.
— O que é isso no seu rosto? -ela perguntou, ainda de longe, mas se aproximando.
— Isso o que?
— Está vermelho.
O tapa da Simone. Ô mão pesada!
— Tá, é? Futebol. Eu tava distraído e tomei uma bolada.
Ela segurou o rosto dele para ver melhor.
— Engraçado, parece que tem uma marca de dedo aqui.
Rodrigo forçou uma risada e se afastou dela.
— Desde quando bola tem dedo, mãe!?
— Rodrigo, você não se meta em confusão. Eu não quero ser chamada na escola por mau-comportamento seu.
— Que confusão, mãe?! Ei, sou eu, seu filhinho gracinha. Vou pro quarto, que hoje tem um monte de dever de casa pra fazer.
Assim ele escapuliu dos olhos da mãe que, se tivesse olhado o rosto de Rodrigo antes do almoço, teria visto claramente a mão de Simone inteira marcada no rosto dele. O susto do inesperado tinha sido tão intenso que Rodrigo nem tinha sentido dor pela bofetada. mas agora, que a mãe chamara a atenção, ele percebeu que realmente a região atingida estava dolorida.
— Que menina metida… Mas que bom que ela se meteu, porque eu não sabia o que fazer -esse pensamento trouxe de volta à lembrança uma dúvida nova— Não: dever de casa primeiro.
Ele escovou os dentes e fechou-se no quarto para fazer as tarefas. Por volta de três e meia, ele já tinha terminado e foi ao quarto dos pais querer usar o computador, mas Lenita estava ali.
— Ah, você está no computador… -lamentou.
— Já acabou todo o dever?
— Já.
— Quer usar aqui?
— Quero.
— Faça um lanche rápido: eu já vou terminar.
— Valeu!
Rodrigo foi à cozinha e comeu alguns biscoitos de aveia e tomou um copo de suco; depois voltou ao quarto. Lenita já tinha fechado seus aplicativos e estava saindo.
— Vai jogar?
— Depois. Estávamos discutindo um tema hoje na escola e eu quero me aprofundar no assunto.
Lenita ficou impressionada com o discurso e saiu, deixando Rodrigo à vontade. Rodrigo sentou-se diante do computador, abriu o Google e digitou apenas uma palavra: “autista”.
— Caraca, mais de dez mil resultados?
Ele escolheu alguns resultados para abrir e ler. Depois mais algumas páginas, e outras, e outras. Todas elas traziam o conceito de autismo: transtorno do desenvolvimento que afeta a comunicação e a sociabilidade da criança, aliado a interesses restritos, apego à rotina, inflexibilidade, entre outros comportamentos considerados não-apropriados. Algumas páginas traziam depoimentos de pais, sugestões de tratamentos — e eram tantos nomes! ABA, TEACCH, Son Rise, Dan!, além de suplementos de vitaminas, dietas alimentares, dieta sensorial… só para começar.
— Meu Deus, como alguém pode viver com isso?! Isso não é vida, é um inferno! Pobre Angela…
Ele leu mais alguns trechos das páginas abertas mas, de repente, fechou tudo, quase com raiva.
— Eu não preciso saber essas coisas. Ela não é nenhuma criança de três anos que eu tenho que tratar -ele se lembrou do que acontecera mais cedo— Ela é uma menina de… Quantos anos será que ela tem? Ela é tão… doce…
Ele abriu seu jogo preferido e ocupou-se dele até que o pai chegou em casa e veio ao quarto.
— Só não me diga que passou a tarde jogando.
— Não, pai -ele nem tirou os olhos da tela, para não perder a concentração e o jogo— Fiz o dever de casa e pesquisei a internet.
— Vá terminando, porque já vamos jantar.
— Tá.
A família jantou reunida, conversando sobre assuntos diversos e depois, enquanto os pais arrumavam a cozinha, as crianças jogaram umas partidas de dominó, até que a mãe chamou:
— Hora de dormir.
O jogo foi guardado e os três filhos, supervisionados pela mãe, organizaram roupa e material para o dia seguinte e se arrumaram para a noite de sono. Às dez e quinze, os três estavam em suas camas, com as luzes apagadas. Lenita e Rui também se arrumaram para dormir e, quando já estavam deitados, ela contou:
— Aconteceu alguma coisa hoje na escola e Rodrigo levou um tapa.
— O que? -ele se assustou com a informação— Um tapa? Como?
— Ele não quis me contar. Disse que levou uma bolada no recreio.
— Ele mentiu? -isso também era novidade— O que está acontecendo com o meu filho, Lenita? -ele estava preocupado— Um mês na cidade grande já virou a cabeça dele…
— Adolescência, Rui. Depois eu fiquei pensando… Rui, meninos dão socos e não tapas. Quem bate com a mão aberta são as meninas.
— Ou seja?
— Ele deve ter falado alguma coisa; a menina não gostou e bateu nele. Se uma cantada não desse certo, você não ia contar à sua mãe, ia?
— Lenita, ele é um menino. Meninos não dão cantadas.
— Rui, ele é um adolescente. Quinze anos é uma idade de muitos hormônios: você devia se lembrar. Ele está numa escola nova, conhecendo muitas meninas novas. Eu acho muito natural que ele se interesse por elas e comece a testar o que funciona e o que não funciona.
Rui soprou o ar que tinha nos pulmões, refletindo sobre as palavras dela. E concluiu:
— Não estou preparado para ter um filho adolescente.
— Ninguém está. Mas faremos o melhor possível
Eles trocaram um sorriso e um beijo, apagaram os abajures e acomodaram-se para dormirem.
—”—