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O prisioneiro foi retirado da cela imunda, teve as mãos amarradas para trás e foi escoltado por dois soldados através de corredores mal-cheirosos, iluminados com tochas fixadas às paredes. Não era a primeira vez que era preso. Na verdade, por motivo semelhante tivera de deixar sua terra. Degredado… e agora novamente preso. Se tivesse sorte, talvez…
Eles entraram numa sala espaçosa. Nas paredes amareladas, estavam fixadas as tochas que iluminavam o ambiente. Uma grande mesa de madeira de lei era o único móvel, atrás do qual estava sentado um homem de meia idade, vestido de preto e de feições severas.
– Duarte Correia? –o ouvidor perguntou ao prisioneiro, com um tom de voz intimidador.
– Sou eu mesmo, sim senhor –respondeu com tranquilidade.
– Então cá estás, novamente –ele olhou um pedaço de papel, em que estavam escritos os outros julgamentos daquele preso– Meus antecessores têm sido bondosos contigo. –ele olhou para o outro, implacável– Eu não costumo ser complacente.
– Mas, com certeza, sois justo, uma vez que sois ouvidor.
– Por certo.
– Então haveis de concordar que não é justo que eu fique preso.
– Pois hás de ficar preso o resto dos teus dias! –sentenciou.
– A alimentar-me com o dinheiro da Coroa? Então achais justo que eu viva às custas de Sua Majestade?
– Mais justo do que viveres à custa de teus patrícios.
– Meus patrícios não me empregam, se podem ter escravos negros. Só o que faço é buscar não morrer de fome.
– Então roubas.
– Pequenos furtos, para matar a fome. Não acumulo riquezas, como muitos de meus patrícios.
– Não sejas insolente!
Duarte ergueu o rosto e falou com altivez:
– Se a Coroa me há de sustentar, que o faça com dignidade.
– Vais para a cadeia.
– Dá-me um emprego, e eu cesso meus furtos.
– E que emprego achas que podes ter, se não tens um ofício?
– O Governador vai para o sul, expulsar os franceses, eu sei. Vai acudir o sobrinho dele, no tal de Rio de Janeiro. Eu posso fazer algum serviço –ele viu que o outro tinha parado para pensar– Se eu morrer na viagem ou na peleja,… será um alívio para os meus patrícios. E, se eu não morrer,… Bem, dizem que o Rio de Janeiro é longe daqui.
– E ficarás por lá? –ele estava quase convencido.
– Já vi que não tenho utilidade cá, nesta terra. É hora de procurar outras paragens, onde eu possa viver em paz. Se eu puder, fico por lá, a ganhar meu sustento com honestidade. Se não puder, vou a São Vicente, ou embrenho-me pelas matas, até encontrar os espanhóis.
O ouvidor encostou-se na cadeira e pensou na situação. Era difícil cuidar de uma terra onde muitos colonos estavam à força, por degredo. A lei era a do mais forte e o erro não era roubar ou matar, mas ser pego. Duarte Correia nunca matara ninguém. E, como ele mesmo dissera, não acumulava riquezas: roubava apenas para comer. Era, realmente, um pobre-coitado, inofensivo. Mas não podia simplesmente soltá-lo, como já tinham feito tantas vezes. Melhor livrar-se dele:
– Está muito bem. Aceito teu compromisso de que serás honesto. Levai-o para o Alferes Sousa Amaral: Duarte Correia vai ajudar a libertar o Rio de Janeiro dos franceses.
Duarte sorriu, satisfeito com o julgamento. Estaria livre novamente. Numa terra estranha, inóspita e hostil. Mas estaria livre.
—“—
Algum tempo depois, Duarte estava de volta às ruas. Duarte era de estatura média. Não era gordo mas os ossos largos o faziam parecer grande. A pele era bem branca, mas a higiene de frequência irregular o fazia parecer quase moreno. As mãos grandes e fortes tinham a pele grossa, resultado de trabalhos braçais e maus tratos. Os cabelos castanhos-escuros, suavemente ondulados, eram contados descuidadamente à altura da nuca. No rosto, em que figuravam os olhos castanhos e o nariz reto, sobressaía o queixo, que se projetava levemente quando ele falava, talvez pela forma pessoal de usar o modo lisboeta de falar o português. A firmeza de caráter era uma de suas qualidades, a par da afabilidade e de uma certa honestidade. Ele andou até o mercado, onde encontrou um menino de quatorze anos, comprido e magro, mas mais baixo que outros meninos da mesma idade. Era ágil e maleável, como compensação à pouca força física. A pele era clara por nascimento, mas tinha sido exposta muitos anos ao sol tropical e, por isso, tornara-se quase morena. Tratava a todos com amabilidade e gentileza, sendo, por isso, querido por quantos o conheciam.
– O que conseguiste hoje, garoto?
– Duarte! –ele correu a abraçá-lo– Desta vez, pensei que não te veria mais!
– Pois cá estou.
– Como te livraste? –ele soltou-o.
Duarte sorriu e contou:
– Ofereci-me para viajar com o Governador.
– Para o Rio de Janeiro? –ele arregalou os olhos, surpreso.
– Sim.
– E ficarás lá?
– Ficarei.
– Não podes, Duarte! Que será de mim?
– Tu não és mais tão criança: podes cuidar de ti mesmo.
– Eu irei contigo.
– Não digas uma tolice dessas. Então não sabes que os franceses ainda estão por lá? Haverá peleja, e muitos podem morrer.
– E tu vais feliz para a morte.
Duarte riu da observação do outro.
– Não vou morrer. Ou achas que vou lutar?
– Não vais?
– Não: ser soldado também é um ofício e eu não tenho nenhum. Quando tudo acabar, e os franceses forem expulsos, construirei minha vida lá.
– Pensei que tivesses vindo construir tua vida aqui.
– Sim, aqui no Brasil.
– Em Salvador.
– Eu vim para cá para escapar da prisão. Pelo mesmo motivo me ofereci para essa empreitada. E, a menos que precise escapar da cadeia novamente, o Rio de Janeiro será o meu lar.
– Achas que conseguirás um emprego lá?
– Acho. Aqui é difícil: todos já tem empregados. Mas o Rio de Janeiro é uma cidade nova. Mas chega de conversarmos. Eu preciso tomar um banho para tirar de mim esse cheiro de cadeia.
– Vais tomar banho? –estranhou– Mas tomaste banho não faz nem um mês!
– Sabes que sempre tomo banho quando saio da cadeia.
– Mas vives preso!
– Sim. Vê como minha pele fica gasta de tanta água. Mas é um mal necessário. Será meu último banho em Salvador. O Alferes me deu este papel: até a viagem, comeremos por conta da milícia.
– Eles te darão de comer, em vez de te prender?
– Isso mesmo. Vamos para casa. Assim tu me ajudas a aviar meus pertences para a viagem.
– E avio os meus também.
– Tu não vais comigo, Fernão.
– Vou sim –decidiu– Eu também não consigo emprego por cá. Terei que viver de furtos e acabarei sendo preso. É o que tu queres para mim?
– Não. –ele pensou um instante e sorriu– Está muito bem, pirralho: tu vais –ele passou o braço pelos ombros do outro e eles começaram a andar– Já tens idade para construir uma cidade.
O rapaz sorriu, satisfeito, e passou o braço pelas costas de Duarte, até apoiar a mão no ombro dele, e os dois foram até a construção de barro e palha que lhes servia de casa.
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Gostei. A história promete!
Bjs.