Apenas a alguns meses os franceses tinham celebrado o início de um novo ano, apesar da recente derrota de outubro. A guerra seguia sem tréguas entre os povos irmãos, e os ingleses, aos poucos, conseguiam vitórias importantes. A derrota do exército francês em Azincourt abalara o país, não somente econômica e politicamente mas principalmente no que se refere a autoconfiança.
No interior do país, num território fiel a Charles VI, um jovem vivia sua guerra particular. O pai dele estivera presente na batalha contra Henry V e, agora, repousava no jazigo da família. O velho barão não tinha muitas posses mas seu feudo e seu título eram a causa de uma guerra justa: o direito à sucessão.
– Ainda nos pesa no coração a perda de nosso pai. Mas acho que é mais que hora de pensarmos na herança, meu irmão.
– O que quer dizer com “pensar na herança”?
– Temos que ver como vamos dividir-
– Dividir? Eu sou o único herdeiro.
– Eu quero uma parte, Estienne.
O rapaz deu uma gargalhada e encostou-se na cadeira.
– Você? -ele ainda não conseguia parar de rir- Quer uma parte? Ora, por favor, não me mate de rir.
– Por acaso não tenho direito? Por acaso o pai era só seu?
– Você sabe que o primogênito é o herdeiro. E eu sou o primogênito.
– Eu nasci um ano antes de você. -atacou.
– Eu sei. -ele disse tranqüilo.
– Então eu-
– Você é mulher, Ninette.
– E o que isso importa?
Ele parou um instante para pensar na resposta. Encostou novamente na cadeira e procurou acalmar-se.
– Você sabe que, pela lei, você não tem direito.
– Eu só quero uma parte, Estienne.
– Você quer é um marido.
– Não. Eu quero terra.
– Ninette,… quer um condado? Talvez um ducado? Posso conseguir isso para você.
– Não quero um condado. Quero a minha parte nestas terras.
– Está bem, Ninette, chega por hoje. Agora saia, que preciso resolver algumas coisas importantes.
– Se são referentes à nossa herança, não creio que precise sair.
– Ninette-
– Ou então vamos resolver logo a parte-
– Eu não vou admitir isso! -ele levantou-se- Estou tentando ser paciente mas você, francamente-
– Não levante a voz para mim: você não é melhor do que eu.
– Saia daqui. Agora.
– Somos filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Eu não vou deixar que você decida minha vida. Não vou deixar que você tome o que, por direito, também é meu.
– Direito… Você sabe que as mulheres são excluídas da linha hereditária. A função das mulheres é dar filhos aos homens, não atuar como homens. Uma mulher tem direito a um marido, não a um feudo.
– Meu filho terá direito a este feudo?
– É claro que não. Receberá a herança do pai dele.
– Há setenta e cinco anos eles lutam contra essa lei imbecil. Ele vai acabar sentando-se no trono da França.
– Nosso rei é Charles VI. Esse Henri da Inglaterra não tem nenhum direito.
– Só porque foi uma mulher que deu a ele sangue francês? Ele tem direito, sim. Assim como eu. -ela pensou um instante- Vou deixá-lo resolver suas… “coisas importantes”. Eu também tenho coisas importantes a resolver.
Ela saiu, batendo a porta. Estienne sentou-se, procurando acalmar-se. Precisava combinar logo o casamento de Ninette.
– Que mulher terrível! Indócil assim… está mesmo precisando de um homem para atender-lhe os caprichos.
— “ —
Ninette e um homem caminhavam a passos curtos e lentos pelos muros do castelo, onde ele montava guarda, naquela tarde de vento frio.
– Entende o que quero, Frederic?
– Pode ser perigoso.
– Por isso preciso de você.
Eles pararam de andar e Ninette virou-se de frente para ele.
– O que me diz?
Ele pensou um pouco.
– O que eu ganho com isso?
Ela sorriu: sabia que ele faria essa pergunta.
– Não gostaria de ser o chefe da guarda? Você teria um soldo maior… e um certo poder. Além da minha -ela se aproximou e olhou fundo nos olhos dele…- eterna gratidão -e voltou a andar.
– E se seu plano não der certo? -ele alcançou-a e novamente pararam.
– Farei companhia a você na prisão… e na forca.
– É arriscado demais.
– Meu irmão não gosta de você e você sabe disso. Acha que ele confiaria a segurança do castelo a você? Acha que vai conseguir melhorar de vida com ele?
– Fico sem argumentos.
– Que bom -ela sorriu- Bem, meu chefe da guarda, sua primeira missão é conseguir soldados de sua confiança. Não diga a eles meu plano: eles têm que ser leais a você, não a mim. A mim, basta a sua lealdade.
– O que vou oferecer a eles?
Ela pensou um pouco.
– Folga uma vez por semana. E podemos negociar uma baixa de impostos para as famílias deles.
– Baixar os impostos? Como vai cuidar de sua sobrevivência?
Ela caminhou até o merlão e olhou para fora pela ameia.
– Muitas gerações já trabalharam nestas terras. Para cuidar delas, posso abrir mão de algum luxo.
– Farei o possível para não desapontá-la.
– Seja esperto, procure apenas os que têm algum motivo pessoal para ficar do nosso lado. Não diga nada aos que são leais ao atual chefe da guarda.
– Eu sou leal a ele. -ele sorriu- Mas sou muito mais leal a mim mesmo.
– Eu sei que a lealdade depende de quem paga mais. Mas, se alguém me entregar para meu irmão, pode conseguir alguma vantagem. Conto com você também neste detalhe.
– Não vou decepcioná-la.
– Você tem dois dias para cuidar de tudo. Conto com você, Frederic. -ela colocou a mão no rosto dele e sorriu.
– Ninette! -uma voz de mulher gritou, chamando.
Ela virou-se para onde a chamavam. Despediu-se do soldado com um olhar e afastou-se em direção à mulher.
– Sim, mamãe.
– O que estava falando com aquele homem?
– Ele pediu-me um favor.
– Que favor?
Ela olhou para a mãe com o canto do olho.
– Pediu-me… que intercedesse por ele junto a Estienne. A senhora sabe que meu irmão não gosta dele.
– E você gosta dele?
– Por que haveria?
– Então não foi um gesto de carinho?
Ela parou e olhou para a mãe.
– O que quer dizer com “gesto de carinho”?
– Você colocou a mão no rosto dele. Eu vi.
Ninette voltou a andar.
– Ora, mamãe, que tolice. Só quis dar-lhe esperança.
– E como ele interpretou?
– Chega, mamãe. Esta conversa não nos leva a lugar algum.
Elas entravam em casa.
– Então quero tratar de um outro assunto.
– Só um minuto, mamãe, tenho que lavar minhas mãos. Aliás, venha também a meu quarto: podemos conversar lá.
As duas subiram a escada e a mãe esperou que a filha terminasse de lavar as mãos para começar:
– Seu irmão me disse que vocês discutiram ontem. Ninette, que tolice! Que idéia absurda querer parte da herança.
– O pai dele era meu também. Nós dois temos o mesmo sangue.
– Filha, as mulheres têm outro tipo de poder: elas dominam os homens.
– Os homens fazem as mulheres tolas pensarem assim.
– Seu pai nunca me negou nada.
– E a senhora negou algo a ele?
– Ninette, um bom marido-
– Eu não quero um marido, mãe.
– Entendo que não queira se casar com um estranho. Mas tenho certeza de que seu irmão não irá contra sua escolha. Ainda mais se você escolher-
– Servos escolhem seu senhor?
– Filha, estou tentando melhorar as coisas-
– Ser dominada primeiro pelo pai, depois pelo irmão, depois por um marido para, quando ele finalmente morrer, ser dominada pelo próprio filho. Mãe, isso não é vida!
– E que vida você quer? A vida de um homem? Quer lutar nas guerras ao invés de ficar protegida no castelo-
– Cuidando de crianças? Sim, quero.
– Não tem condições. Pense naqueles dias-
– Se lhe dá dor de cabeça, pouco me importa. Nunca senti nada e a senhora sabe disso. Sei que não tenho a força de um homem. -ela sorriu com maldade- Mas o que mais um homem tem além da força?
– Ninette, tenha juízo.
– Não vou abrir mão da parte a que tenho direito. Se Estienne quiser conversar, podemos negociar, eu não me importo em ficar com uma parte menor, desde que a terra seja boa.
– Isso é loucura!
– E quem é a louca? Vocês, que passam a vida satisfazendo os caprichos de seus maridos? Ou eu, que não vou me curvar a nenhum marido?
– Não pode desejar nunca se casar.
– “Não me curvar” não significa “não me casar”.
– E que homem vai consentir nisso?
– Com um dote de meio feudo, que homem vai me recusar?
– Seu irmão não vai concordar.
– Ele vai concordar. Vou dar a ele mais dois dias para pensar. -ela sorriu com maldade- E, daqui a dois dias, eu sei que ele vai concordar.