Trecho

Primeiro a honra – trecho

 
  

Capítulo I

 
Clodoveu I, neto de Meroveu, era Rei dos Francos desde 486, quando derrotara Afranius Siágrio, último duque romano da região, na Batalha de Soissons, ampliando seu domínio, que passara a abranger, além da original Toxandria, ao redor das cidades de Tournai e Cambrai, a maior parte da região a norte do rio Loire, e constituindo um Reino Franco com capital em Soissons, que tinha sido também a capital de Siágrio. Havia alguns meses, o rei franco derrotara os alamanos, na Batalha de Tolbiac, depois do que, por influência de sua mulher Clotilde, fez-se batizar cristão, pelo Bispo Remi, na cidade de Reims, no que foi acompanhado por cerca de três mil francos.
Nesse reino franco de Clodoveu, não havia unidade étnica, nem linguística, nem política, nem religiosa, uma vez que nele habitavam francos sálicos e francos ripuanos, além de toda uma população mais ou menos autóctone, descendente dos romanos e das antigas tribos celtas que ali viviam desde muito antes até mesmo da ocupação romana.
As fronteiras do reino tinham que ser sempre bem vigiadas, fosse contra os Bretões do oeste, ou os Visigodos e Burgúndios do sul, ou os Alamanos a leste, além do risco constante de invasões das tribos ainda nômades do nordeste.
Ao sul do território, próximo a Orléans, havia um sólido castelo de madeira, cercado por um pátio e uma paliçada, habitado por francos. Ali, próximo à fronteira da Frância, todos estavam sempre prontos para a guerra. Muitas vezes, contrariando as expectativas, a guerra não era contra os diferentes.
Em prantos, a jovem entrou no quarto da amiga.
– Mas o que aconteceu!? -ela se virou, assustada com a entrada da outra.
– Eu sou a mulher mais infeliz do mundo!
– Vem aqui, me conta tudo.
As duas sentaram-se na cama, frente a frente. Ambas tinham pele clara e cabelos loiros, mas a mais nova tinha olhos azuis, enquanto a mais velha tinha olhos castanho-claros.
– Teu pai me arranjou um noivo.
– E isso é motivo para tanto choro!?
– Tu me darias razão, se soubesses quem é.
– Quem é?
– Sigemond Toulière.
– Rosala, ele é rico e poderoso! Ah, tomara eu ter a mesma sorte quando chegar a minha vez!
– Constance, ele é insuportável! Um instante que meu padrinho nos deixou sozinhos, ele foi extremamente inconveniente.
– É natural, se ele está apaixonado.
– Ele não está apaixonado. E ele não foi apenas rude, ele…Oh, por Deus, eu não teria coragem de repetir as coisas horríveis que ele me disse!
– Que tipo de coisas?
– Coisas como… como… sexo.
– Ora, Rosala, como se tu não soubesses de que se trata.
– Sim, eu sei mas… ele falou como se fosse algo… brutal, animalesco… nojento. Eu tenho nojo dele. Eu não suportaria se ele me tocasse.
– Meu pai sabe disso?
Ela suspirou resignada e respondeu:
– Ele disse que eu aprenderei a amá-lo, com o tempo.
– E achas que aprenderás?
– Não quero ter essa chance. Ah, por que teu pai não enxerga? Seria tudo tão mais fácil…
– Thierry?
– Sim. -ela sorriu- A ele eu me entregaria.
– Não minta, Rosala.
– Não é mentira: tu sabes que eu o amo.
– Sei. E sei tudo o que aconteceu por causa desse amor.
– Tudo? A que te referes precisamente?
– Depois de eu insistir muito, ele me confirmou que vocês… fingem que são casados quando estão sozinhos.
– Oh, não posso acreditar que ele tenha contado tal mentira!
– Se só ele estivesse diferente, eu não teria desconfiado, não teria pedido confirmação. Mas tu também estás diferente.
– Diferente como?
– A forma como olhas para ele, como olhas para mim. E tens razão por me olhar como a uma criança, porque, perto de ti, sou mesmo uma criança.
– Constance… -ela se surpreendeu com a percepção da outra.
– Não precisas te preocupar: da minha boca nunca ninguém saberá.
Alguém bateu à porta e entrou. As duas olharam para o rapaz sorridente e de olhos brilhantes enquanto ele se aproximava. Era alto, de ombros largos e braços fortes, treinados para o combate. O cabelo castanho-claro era cortado na altura dos ombros e não usava barba por ainda não ter pelos o bastante para isso.
– É permitido a um cavalheiro intrometer-se na conversa de duas senhoritas?
– Sim, pois se falávamos de você. -Constance respondeu.
– E falavam bem ou mal?
– Falávamos a verdade, meu irmão, só a verdade.
– Então devo ser uma pessoa muito desagradável -ele se abaixou perto da outra, preocupado- porque a verdade sobre mim faz Rosala chorar.
– Não -ela sorriu e secou o fim das lágrimas- Isso foi antes.
– Posso saber o que a fez chorar?
Rosala olhou para Constance, perguntando se deveria contar. Constance olhou para Thierry, prevendo que ele sofreria.
– É um segredo? -ele percebeu a evasiva.
– Não. -Rosala respondeu- Meu padrinho hoje me apresentou a meu noivo.
– Noivo? -ele se levantou- Impossível: eu falei com ele. Eu disse a ele que é comigo que você vai se casar. Eu não vou deixar. Não vou deixar. -ele viu o sorriso de Rosala- A menos que… que tu queiras te casar com outro.
– Por nada neste mundo eu trocaria você por ele. Estaria no último estágio de loucura se fizesse isso.
– Não é o amor uma loucura?
– Sim. Mas a loucura de amor é boa. Seria preciso estar possuída pelo demônio para amar aquele homem.
– Quem é ele?
– Sigemond Toulière.
– Toulière? Aquele porco nojento? Meu pai enlouqueceu! Eu vou falar com ele. -ele foi até a porta e voltou- Rosala, tu me amas?
– Sabes que sim.
– Tens certeza desse amor?
– Sim.
– Se não houvesse outro jeito, fugirias comigo?
– Sim.
– E ficarias comigo todo o tempo? por mais difícil que viesse a ser nossa vida?
– Só a morte vai me separar de ti, Thierry. Se ela conseguir.
– Então vou falar com meu pai.
O jovem saiu do quarto e andou pelos corredores mal-iluminados até uma sala.
– Pai, preciso falar com o senhor -ele já entrou falando e só então percebeu que o pai não estava sozinho- Ah, Toulière, você está aí? Quando chegou?
– Não faz muito tempo. Como tem passado, Lanrose?
– Bem. E você?
– Melhor do que ontem: acabo de conhecer a mulher que vai ter meus filhos.
– É mesmo? -Thierry precisou se segurar para não decidir pela força a posse da mulher- Preciso falar com o senhor, pai. Pode ser agora? é importante.
– De que se trata?
– É particular. Você se importa, Toulière?
– De forma alguma. Fiquem à vontade, eu vou caminhar um pouco antes do jantar.
Toulière saiu, deixando pai e filho sozinhos.
– Foste descortês com nosso hóspede, Thierry.
– Que idéia absurda é essa de entregar Rosala a ele?
– Será um bom casamento para ela.
– Como pode passar por sua cabeça entregá-la a outro se eu já lhe disse que a quero para mim? Pai, eu a amo!
– Você a tem como a uma irmã.
– Não-
– Thierry, quando os pais dela morreram e ela veio para cá, vocês eram crianças. Vocês cresceram juntos, amam-se como irmãos.
– Não, pai. Sei como amo Constance e como amo Rosala. É diferente.
– A única diferença é que Rosala não tem seu sangue.
– Ela nunca foi minha irmã. -ele lembrou de como a relação entre eles era diferente desde a infância- Pai… -como dizer?- Se as duas fossem minhas irmãs, eu ficaria tanto tempo com elas, em vez de ficar com meus amigos, ou com outras mulheres?
– O que quer dizer?
– Que, quando estamos os três juntos, é Constance quem está a mais.
– Tomando conta. -ele entendeu- E quando estão os dois sozinhos?
– Não fazemos nada que possa provocar arrependimento ou vergonha.
– Ainda bem.
– E se tivéssemos feito?
– Toulière não poderia saber.
– Por que justo Toulière, pai? Sabe que tipo de homem ele é. Se fosse Constance, o senhor teria arranjado um marido melhor.
– Rosala está passando da idade de casar. O dote dela não é grande, é difícil conseguir quem a queira assim.
– Eu quero. Se não por ela, por mim: desfaça esse casamento.
– Eu já dei minha palavra a Toulière. E você sabe que os Lanrose têm só uma palavra.
– Sei. Dei minha palavra a Rosala de que me casaria com ela. O senhor sabe que os Lanrose têm só uma palavra.
– Você não podia ter assumido esse compromisso.
– O senhor é quem não podia ter assumido esse compromisso. Nunca fiz segredo de meu amor por ela e já tinha falado com o senhor sobre minhas intenções. Rosala já é comprometida comigo.
– Nunca a dei a você.
– Ainda está em tempo.
– Eu a dei a Toulière. Eles vão se casar em dois dias.
– Ela não vai se casar com ele. O senhor tem até amanhã para acertar tudo por bem. Ou então, eu agirei.
– E o que pretende? Matar Toulière ou fugir com Rosala?
– O que o senhor prefere que eu faça?
– Se lutar com ele, ele o matará. Se fugir com ela, ele o matará. Esqueça isso, Thierry.
– O senhor é quem vai decidir se eu vou morrer amanhã ou não.
– Ele será um bom marido para ela.
– Ele só será um bom marido se morrer numa das guerras. Ele é libertino e corrupto, saqueador e assassino. Que ameaça ele lhe fez, pai, para o senhor entregar a ele a filha de seu melhor amigo?
O pai olhou para o chão.
– Uma vez que se conhece Toulière, é melhor ser amigo dele do que inimigo.
– Ele o ameaçou? -ele se assustou com a hipótese.
– Não formalmente. Mas ele deixou bem claro que quer se casar e eu tenho duas mulheres jovens na minha casa. Dói entregar-lhe Rosala. Mas eu sofreria bem mais se tivesse que entregar Constance.
Thierry pensou na situação. Amava as duas moças, não suportaria ver nenhuma das duas casada com Toulière.
– Se eu fugir com Rosala, o senhor terá que entregar-lhe Constance?
– Não. Terei que mandá-lo atrás de você. E, se ele o pegar, ele o matará.
– Então fugiremos ainda esta noite. Amanhã já estaremos longe, ele não nos alcançará.
– É loucura, Thierry!
– Loucura é ver a mulher que eu amo ser entregue a alguém desprezível como Toulière e não fazer nada. Só nós dois sabemos quando eu partirei. E só eu sei para onde vamos.
– Não quero perdê-lo assim, meu filho. Como vai viver longe daqui?
– Não sei. Mas Deus há de me mostrar o caminho.
– Não -ele segurou o filho para retê-lo- Darei Constance a ele. Ela é uma boa menina-
– Não, pai. Não é justo que Constance pague pelo meu amor. Rosala está disposta a tudo comigo. Se alguém tem que sofrer por esse amor, somos eu e ela.
– Não sofrerei também eu por perder meu filho?
– Toulière não vai nos alcançar, pai. Estarei vivo e bem, apenas longe.
– E eu terei que entregar toda a herança de Lanrose ao marido de Constance…
Um servo bateu à porta e teve permissão de entrar.
– O jantar, senhor.
– Sirva. Onde está Toulière?
– No jardim, senhor.
– Mande chamá-lo, e também as minhas filhas.
O servo saiu. Lanrose olhou para o filho, como se quisesse memorizar-lhe as feições, como se o estivesse vendo pela última vez.
– Não me olhe assim, pai: eu não vou morrer.
– Vamos: não convém deixar nosso hóspede esperando.
Os dois saíram da sala. No caminho, as duas moças os alcançaram. Rosala segurou Thierry pelo braço e perguntou-lhe a situação com um olhar.
– Depois conversaremos, Rosala.
– O que ele disse?
– Aja como se ainda fosse noiva dele.
– Até quando?
– Enquanto estivermos aqui.
Rosala parou de andar por um instante e fechou os olhos, entendendo o que isso significava.
– Deus nos ajude!
Os quatro entraram no salão de banquetes. Toulière chegou logo depois e eles sentaram-se para a refeição. Toulière era alto e magro, mas forte como deve ser um guerreiro acostumado a vencer. Tinha cabelos loiros e olhos azuis, e uma expressão facial dura, de quem não sabe fazer gentilezas. Por isso, uma palavra mais suave ou um sorriso pareciam sinais de falsidade, pois não estava acostumado a eles. Resolvia todos os assuntos pela força e pela intimidação. Como também era inteligente, já tinha percebido que não seria assim que conquistaria a afeição de sua noiva.
Para evitar desentendimentos, Rosala sentou-se longe tanto de Toulière como de Thierry, e perto de Constance.
– Minha noiva é muito tímida, Lanrose. Isso é bom sinal?
– É uma moça de respeito, -Lanrose respondeu- recatada, não dá confiança a qualquer um.
– Mas eu sou o noivo dela.
– Seja paciente, Toulière. Até parece que não sabe como lidar com uma mulher.
– de respeito. -Thierry completou- Meu pai devia saber que nosso hóspede não costuma visitar moças decentes.
– O que você tem hoje, Lanrose? Eu lhe fiz algo?
– Não.
– Minha presença o incomoda?
Thierry precisou se conter para não responder.
– Desculpe, Toulière, meu humor não está muito bom hoje.
– Não por minha causa, eu espero.
– Não -ele tentou forçar um sorriso- São problemas pessoais.
– Problemas? Não me diga -ele fingiu que se importava- Eu posso ajudar de alguma forma?
Thierry precisou novamente segurar a língua para não responder o que queria.
– É coisa minha, Toulière, eu tenho que resolver sozinho.
– Eu fiquei curioso: que tipo de problema é?
Thierry riu e confessou:
– Mulheres.
Toulière riu também e Thierry disse logo, antes que o outro perguntasse:
– Não me pergunte os detalhes: não quero embaraçar minhas irmãs.
– Por certo que não.
A refeição prosseguiu em silêncio até que Toulière recomeçou:
– Suponho que aquela outra seja a sua filha, Lanrose.
– Supõe corretamente.
– Muito bonita. Você deve ter planos altos para ela.
– O que quer dizer?
– Se entrega sua afilhada a um cavaleiro do rei, é porque espera ainda mais para sua filha.
– Constance não está em idade de se casar.
– Mas você tem planos para ela.
– Os mesmos que tenho para Rosala: que se case com um homem que não a faça sofrer.
– Não tenho costume de maltratar mulheres, Lanrose -ele se ofendeu.
– As mulheres são muito sensíveis, Toulière. São possessivas e exigem muita atenção do marido. Quando não recebem atenção ou descobrem uma traição do marido, elas sofrem.
Toulière riu:
– Bons conselhos, futuro sogro. Vou me lembrar de observá-los.
Lanrose forçou um sorriso e olhou para Thierry, que mastigava a carne de cervo como se trucidasse os ossos de Toulière. Pai e filho aparentavam calma. Uma calma incomum para quem sabe que haverá a guerra.
Depois do jantar, Toulière convidou Rosala para um passeio pelo jardim. Ela quis recusar a companhia mas lembrou que Thierry lhe dissera para agir como noiva de Toulière e aceitou.
– Se não se importam, eu lhes farei companhia.
– Não confia em mim, Lanrose?
– Não.
– Sua irmã pode nos acompanhar, você não precisa deixar de lado seus compromissos por minha causa.
– Não tenho compromissos para esta tarde.
– Então vamos.
Toulière abriu a porta para Rosala, e Thierry foi atrás deles.
– Seus planos são os mesmos de seu padrinho?
– Você quer dizer….: ter um marido que não me faça sofrer? -ela pensou- Eu preferia um marido que eu amasse.
– Você vai me amar, com o tempo.
– É, meu padrinho disse a mesma coisa.
– Você parece não concordar.
– Mas também não discordo.
– Não será difícil para você me amar, quando descobrir minhas qualidades.
– Se descobrir alguma… -Thierry murmurou.
– Não é capaz de descobrir qualidades em mim, Thierry?
– Ainda não tive essa oportunidade.
– Então só vê meus defeitos.
– Não me queira mal por isso.
– De forma alguma: é direito seu não gostar de mim. Mas você hoje está particularmente agressivo. Por quê?
– Não estou mais agressivo do que de costume.
– Está, sim.
– Não vamos brigar por isso, vamos?
– Não -ele sorriu e olhou para Rosala- Não quero que minha noiva tenha uma má impressão de mim.
Rosala tentou forçar um sorriso mas não conseguia fingir gentileza com Thierry por perto.
– Quero ter a impressão correta, seja boa ou má.
– Há de ser boa, eu tenho certeza.
– Por que de repente você resolveu se casar? -Thierry perguntou de repente.
– Lanrose, eu estou tentando conhecer melhor minha noiva. Se minha presença o aborrece tanto, por que insiste em continuar aqui?
Thierry e Rosala se olharam. Toulière percebeu o olhar e entendeu tudo.
– Você a ama! Por Deus, Lanrose, é sua irmã!
– Ela não é minha irmã.
– Então é verdade: você a ama.
– Amo.
– E é correspondido? -ele olhou para Rosala, que concordou com um gesto- Ela vai se casar comigo, Lanrose.
– Eu sei.
– Se tentar fugir com ela ou se se tornar amante dela, eu mato os dois.
– Eu sei.
– O que pretende, então?
Thierry pensou na resposta:
– Se ela for infeliz, eu mato você.
Toulière sorriu, satisfeito que o outro estivesse conformado com a perda.
– Rosala vai nos aproximar: vamos acabar ficando amigos.
– Nenhuma mulher conseguiria tal milagre.
– O tempo dirá. Por isso você está tão agressivo: dói-lhe vê-la comigo -ele se voltou para Rosala- Quantos beijos seu namoradinho lhe deu até hoje, querida?
Rosala apenas abriu a boca, tentando falar, mas sem saber o que dizer.
– Então ele a beijou pelo menos uma vez. Então eu não preciso esperar dois dias.
Toulière ía abraçá-la mas Thierry o segurou.
– Não vai tocá-la enquanto não for marido dela.
– O casamento já está acertado, já me considero marido dela.
– Ponha as mãos nela e é um homem morto. -ele se colocou à frente do outro para barrar-lhe o caminho.
Toulière desembainhou uma adaga e apontou-a para Thierry – uma adaga de metal prateado, com pedras incrustradas no cabo dourado.
– Saia da frente, Lanrose.
Thierry ergueu o queixo, com superioridade.
– Deixe, Thierry -Rosala pediu, antes que o pior acontecesse- Tenho certeza de que o cavaleiro saberá me respeitar. Tenho certeza de que ele sabe que tipo de mulher eu sou e como ele deve se portar com uma donzela. Deixe, Thierry. O homem que se casará comigo há de saber me respeitar. Ou meu padrinho terá motivo para não consentir nesse casamento.
Thierry olhou para o chão, enquanto engolia todo o orgulho. Rosala foi até Toulière.
– Guarde a adaga, senhor, antes que me machuque por acidente.
Toulière obedeceu e se aproximou sorrindo de Rosala, até quase tocá-la.
– Quantos beijos minha noiva me dará hoje?
– Um.
– Só um? -queixou-se.
– Nem mesmo o homem que eu amo ousou me pedir mais de um beijo em um dia.
– Mas eu sou seu noivo.
– Só meu marido terá direito de me pedir tal coisa.
– Está bem, então me dê um beijo.
Frente a frente, nenhum dos dois se mexeu.
– Ora vamos, não seja tímida.
– O senhor espera que eu tome a iniciativa? Ora francamente -ela se ofendeu- não conhece a mulher com quem vai se casar.
– Qual o problema, Rosala? é só um gesto de carinho.
– E por que motivo eu desejaria demonstrar-lhe carinho com tal gesto?
– Não seja rude.
– Ah, ainda mais essa! Além de me ofender, ainda me acusa!
– Eu a ofendi?
Rosala olhou para ele surpresa:
– O senhor não tem um mínimo de cortesia e gentileza. Se começa assim, que qualidades posso vir a encontrar?
Ele pensou ter entendido a intenção dela e disse logo:
– Não pense que vou desistir de você tão facilmente. Será necessário muito mais que caprichos.
– O senhor não tem nada mais agradável para me dizer? Tem que me fazer desaforos um atrás do outro?
– Lute o quanto quiser, Rosala, mas vai acabar me dando tudo o que eu quero. Quando eu a tiver em meus braços-
– Oh, Thierry, não me deixe ouvir essas coisas!
– Não está sendo cortês, Toulière -Thierry advertiu.
– Quando for minha esposa, será mais agradável comigo. Já tive bastante amolação por hoje. Se me dá licença… -ele fez um gesto de cabeça para Rosala e ía se afastar mas parou- Vamos, Lanrose. Não acha que vou deixar vocês dois sozinhos, acha?
Thierry e Rosala trocaram um olhar e Thierry seguiu Toulière.
Após a ceia, Constance e Rosala retiraram-se para dormir. As duas foram até o quarto de Rosala:
– Ah, que vai ser de mim!? Thierry não me dirigiu uma única palavra todo o dia! Como vou viver assim, Constance, como!?
– Acalma o choro. Tenho um recado para ti.
– De Thierry? -ela sorriu, esperançosa.
Constance concordou.
– Diz.
– Ele estará te esperando à meia noite fora dos muros, na saída sul. Terás que passar pelo túnel, para que não te vejam.
– Deus me ajude…!
– E o que estás esperando? Arruma tuas coisas!
– Se Toulière nos encontrar, nos matará a ambos!
– Então fica e casa-te com ele.
Rosala pensou:
– Prefiro morrer junto com o homem que eu amo do que viver com Toulière. Mas é que… -ela olhou para Constance e pensou se contaria- não estamos mais sozinhos.
– O que queres dizer? -ela desconfiou.
– Thierry ainda não sabe mas… temos mais alguém com quem nos preocupar.
– Rosala, tu não…
– Sim -ela sorriu, feliz.
– Por Deus, se meu pai souber…!
– Nós três, em qualquer lugar do mundo, em qualquer circunstância… Por Deus, nós seremos muito felizes juntos!
– Então não te atrases para a hora combinada. Ah, minha amiga… minha irmã… -ela abraçou Rosala.
– Oh, Constance, não chores! Nós estaremos bem.
– Longe de mim…
– Isso iria acontecer de qualquer jeito. Quando te casares, vais embora daqui. Essa separação é parte de nossos destinos.
– Mas não precisava ser assim.
– Não. Mas, se Deus quis assim, é como tem que ser. Ajuda-me a arrumar algumas roupas.
Rosala separou algumas roupas, um par de sapatos e suas jóias e arrumou tudo num embrulho. À meia noite, as duas esquivaram-se pelos corredores vazios e mal iluminados até uma sala. Abriram uma porta no chão, que era o início de um túnel secreto.
– Adeus, minha irmã -ela beijou-lhe os lábios- Seja muito feliz.
– Você também, Constance. Adeus.
Rosala entrou no túnel carregando o embrulho de suas roupas numa mão e uma vela acesa na outra. Constance fechou a porta e cobriu-a com o tapete. Foi até uma janela e olhou para fora. Lá, em algum lugar daquela noite escura, Thierry e Rosala se encontrariam para, juntos, começarem uma nova vida.
Rosala percorreu o túnel até o fim, até a floresta a umas poucas milhas a sul do castelo, mas Thierry não estava ali. E se tudo não passasse de um plano de Toulière para testar-lhe a fidelidade? Não, então Constance não estaria envolvida. Mas, e se… se Thierry tivesse mudado de idéia desde que falara com Constance?
– Thierry -ela achou melhor chamar.
– Aqui. -ele se apresentou e foi até ela.
Os dois se abraçaram aliviados: estavam juntos.
– Alguém a seguiu?
– Constance me acompanhou até a entrada do túnel. Ainda deve estar guardando a porta: ninguém me seguiu.
– Ainda bem. Agora vamos: quanto antes sairmos daqui, melhor.
– Por que meu padrinho fez isso, Thierry?
– Não há tempo para explicações agora. Vem.
Eles deram alguns passos, até onde estavam amarrados os cavalos. Thierry ajudou Rosala a montar e amarrou o embrulho das roupas dela na garoupa do cavalo, e montou em outro cavalo.
– Não enxergo nada à frente.
– Iremos devagar. Venha depois de mim.
Ele tomou a frente e ela o seguiu. O mais rápido que conseguiam, eles se afastavam do castelo, em direção ao rio Loire.
O dia estava amanhecendo quando Constance saiu da sala. Um homem segurou-a pelo braço sem gentileza.
– Onde está a outra?
– Oh, que susto! Quer me soltar, por favor?
– Onde está a outra? -ele apertou o braço dela.
– Ai, está me machucando!
– Vou machucar bem mais se não me disser.
– Ai, eu não sei!
– Você vai falar.
O homem puxou-a e a fez andar até o quarto dela. Jogou-a para dentro e trancou a porta. Não demorou muito e a porta foi aberta e, desta vez, foi Toulière quem entrou.
– Onde está Rosala?
– Eu não sei.
– Thierry não está no quarto dele, nem Rosala no dela. Eles fugiram durante a madrugada e você sabe para onde.
– Eu não sei. Não sei do que está falando.
– Fale, menina, ou- -ele ía bater nela mas uma mão segurou-o.
– Não ouse por as mãos nela.
– Então fale, Lanrose -ele desarmou o golpe.
– Eles fugiram. Mas Thierry não me disse para onde iriam. Tente encontrá-los, se quiser, mas deixe Constance fora disso.
– Ela sabe para onde eles foram.
– Não -ela respondeu- Nem Rosala sabia.
– Como eles combinaram a fuga.
– Eu dei a ela um recado de Thierry.
– Por que você foi com ela até aquela sala?
– Que sala?
– A sala em que você foi encontrada.
– Eu fui até lá sozinha.
– Um homem de minha confiança viu as duas entrarem na sala, pouco antes da meia noite.
– Seu homem de confiança estava bêbado: eu entrei lá sozinha.
– É melhor contar, menina.
– Para que? Para você matar meu irmão mais facilmente? Mesmo que eu soubesse, eu não diria nada. Como é possível que um homem inteligente como você não perceba que todos aqui o odeiam? Que meu pai e meu irmão suportam sua presença por pura educação? Deus me perdoe por ter visto em você só riqueza e poder, sem enxergar o que você realmente é. Agora eu vejo… O demônio deve ser celestial… perto de você.
– Não tem direito de falar assim comigo.
– Mande-o embora de nossa casa, pai: o ar já está bastante poluído.
– Ela tem razão: é melhor você ir embora, Toulière.
Toulière pensou um instante e decidiu:
– Eu vou. Mas isso não vai ficar assim. Eu vou atrás do seu filho, Lanrose. Se eu o encontrar, eu o mato. Se não o encontrar, volto para matar você. -ele olhou para Constance- Orfãs nunca são jovens demais para o casamento.
Constance suspirou de medo, antevendo seu futuro terrível. Toulière olhou para Lanrose e saiu.
– Oh, papai, e agora? -ela buscou consolo no abraço do pai.
– Calma, Constance. Tenho muitos amigos e Toulière, muitos inimigos. Conseguiremos nos defender.
– E se ele matar Thierry? E se ele matar o senhor? Oh, meu Deus!… Por que esse homem horrível tem direito de destruir nossas vidas, papai?
– Por quê?… porque eu não tive coragem de dizer-lhe não…
– O que vai ser de nós agora, pai?
– Não sei. -ele estreitou o abraço, tentando se consolar também- Mas algo me diz… que o pior ainda está por acontecer.
 
 
 
 
 

(4) Comentários

  1. Ah… Que maldade é essa? Postar só um pedacinho… Estou muito curiosa! E amei a linguagem, não vejo a hora de adquirir o meu exemplar. 😉

    Parabéns!

  2. já adquiri o meu. Só esperando chegar. Se quiser uma fotocópia… brincadeirinha, Mônica.

  3. Anônimo diz:

    Essa foi dureza…
    Li o trecho às 11:54 e agora estou com vontade de comer pão…

    =|

    hehehehheheh

    Parabéns Monica. O texto tem boa fluência e a composição me agradou.

    Att.,
    Barxaza

  4. Duvido que o pão que você comeu (se comeu) seja bom como o pão da Berta. 🙂

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